- Valor Econômico
• Argumento associa pobreza à propensão à corrupção
Gilmar Mendes, na sexta-feira, voltou a atacar o programa Bolsa Família, afirmando que o TSE não estaria "aparelhado para lidar com esta nova forma de compra de votos". A crítica não é nova. O ministro-presidente usou os mesmos termos em palestra no ano passado sem obter repercussão. Desta vez recebeu os holofotes esperados. Sua diatribe foi manchete.
Para o ministro-presidente, o Bolsa Família representaria um grande risco à democracia no Brasil, abrindo a "possibilidade de uma fidelização política" que, no limite, permitiria a "eternização no poder" de um grupo político. Para evitar estes males, recorreu ao mantra: Reforma Política Já! Não propôs medidas concretas. A reforma nos salvará, qualquer seja.
Gilmar não condenou o programa. Não contestou a possibilidade de que o governo adote políticas de transferência de renda para combater a pobreza. Tampouco falou em inclusão de beneficiados baseado em critérios políticos. Não é isto que parece preocupá-lo. O questionamento se dirige às consequências políticas do Bolsa Família para a competição partidária. O programa criaria um "eleitorado cativo". O ministro-presidente, uma vez mais, mostrou que não tem papas na língua. Evitou o jargão jurídico e optou por termos da luta política. Não falou em "captação de sufrágio" definida em lei ou se referiu à possibilidade de clientelismo. Evitou eufemismos e dúvidas. Deu como certa a emergência de uma forma "moderna", "massiva" de compra de votos.
O ministro-presidente sabe por dever do cargo que ocupa que o voto é secreto no Brasil. Sabe, portanto, que governantes, Dilma Rousseff ou Michel Temer, não têm como saber como vota o eleitor, que o recebimento do benefício não tem como ser condicionado ao voto. Os beneficiados pelo programa também sabem que seu voto é secreto. A Justiça Eleitoral foi criada com esta missão e, a que se saiba, não tem encontrado dificuldades para cumpri-la.
Então, o que preocupa o ministro? Compra de votos? Como assim? Não é natural e salutar que eleitores levem em conta as políticas públicas e seus efeitos para seu bem estar na hora de votar? Não é isto que a propaganda institucional do TSE recomendou aos eleitores?
Gilmar sabe que adentrou campo minado, que suas afirmações são polêmicas. A sugestão implícita é a de que os beneficiários do programa deveriam ser alijados do processo eleitoral. O raciocínio é simples e conhecido: receber renda do governo atesta dependência e incapacidade para juízo autônomo.
Ao ouvir as advertências estridentes e insistentes do ministro-presidente não há como ignorar as justificativas que por muito tempo ampararam a negação do direito de voto aos mais pobres. A remissão é imediata, inescapável. O argumento clássico associa pobreza à propensão à corrupção. O carente não teria força ou razões para resistir às investidas dos que querem comprar seu voto e sua consciência. Quem não tem sua sobrevivência assegurada, os que não possuem propriedade, seriam presas fáceis de políticos inescrupulosos e ambiciosos. Assim, em nome da preservação da moralidade politica, deveriam ser mantidos à margem da política.
A matriz elitista do argumento é clara. Os membros da elite projetam uma imagem elevada de si mesmos. Supõem que, por estarem a salvo das necessidades materiais, podem agir de forma imparcial, que estão acima dos interesses mesquinhos e menores que moveriam os premidos pelas necessidades materiais.
Tal imagem não resiste à análise. Os independentes, os que alegadamente estariam acima dos interesses, no mínimo, lutarão para preservar sua independência. Basta pensar um pouco sobre a questão para concluir que todo e qualquer grupo social tem interesses e, de uma forma ou de outra, depende das politicas estatais. Este também é o caso da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), promotora do evento "Soluções para a Expansão da Infraestrutura no Brasil", e nem por isso o ministro deixou de ir lá proferir sua fala. Não fosse assim, por que teriam convidado o ministro-presidente para abrilhantar o evento? Aliás, magistrados, segundo decisão recente do Conselho Nacional de Justiça, sequer precisam revelar os honorários que recebem de empresas por palestras.
Nos dias de hoje, ninguém mais, em sã consciência, defende o sufrágio censitário. Entretanto, os temores e preconceitos sobre o comportamento político dos mais pobres sobrevivem. A carência seria a porta de entrada da corrupção. Os pobres não teriam como resistir, seriam levados e manipulados por políticos que, ao fim e ao cabo, comprariam com seus votos por uns poucos trocados.
Gilmar Mendes não disse como enfrentar os problemas que identificou. Muitos acreditam que a raiz do problema é o voto obrigatório. Sem a obrigação de votar, esta massa de eleitores dependentes e manipuláveis se afastaria voluntariamente das urnas. O voto facultativo funcionaria como um filtro. Só os cidadãos conscientes, dotados de vontade própria se dariam ao trabalho de votar. Talvez não seja a esta a reforma específica defendida pelo ministro-presidente, mas não há dúvidas, que este é o espírito por detrás de sua admoestação.
A crença na necessidade de uma reforma política se apoia na suposição de que o eleitorado brasileiro conteria um contingente significativo de eleitores com alta propensão a serem enganados e corrompidos. Tudo se resolveria se os pesos se invertessem, se os eleitores despreparados deixassem de ser a maioria.
Este é um velho mito, um em que o país acreditou por muito tempo (de 1881 a 1930) com péssimos resultados. As razões são óbvias: é impossível distinguir estas duas classes de eleitores. Não há critérios objetivos que permitam separar eleitores indesejáveis dos desejáveis. Na política real, tal preocupação se traduz na administração discricionária da composição do eleitorado. Votam os meus amigos, não votam meus inimigos.
As declarações do ministro-presidente desconsideram as implicações óbvias embutidas em seu zelo moralizador. Aliás, paradoxalmente, suas inquietações apontam na direção contrária a que inspirou a criação da Justiça Eleitoral. Preocupa que Gilmar Mendes desconheça a história eleitoral do país e da instituição que preside.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.
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