Da disseminação dos carros elétricos ao possível uso de veículos sem condutores, a indústria automotiva global vive um momento de transformações profundas. No Brasil, as discussões têm sido feitas com olhos no retrovisor. Temas que já deveriam estar superados, como o grau de protecionismo às montadoras instaladas no país e a complexidade do sistema tributário, continuam ocupando a pauta do governo e do setor privado. Basta observar a discrepância do noticiário: enquanto fabricantes como a Volvo e países como a China anunciam planos concretos de tirar das ruas os motores a combustão, aqui o dilema é como atender às exigências da Organização Mundial do Comércio (OMC), que condenou recentemente o programa Inovar-Auto e uma série de outras políticas industriais por violações às regras internacionais de comércio.
Nesse contexto, o Rota 2030 - nome dado ao novo regime que deverá vigorar a partir de janeiro - surge como uma chance preciosa de colocar a indústria automotiva brasileira na rota da modernidade. Trata-se de um setor chave na economia nacional: representa 22% do PIB industrial, gera US$ 17 bilhões anuais em exportações (incluindo autopeças) e emprega 1,3 milhão de trabalhadores diretos ou indiretos. Poucas atividades têm essa mesma capacidade de transbordamento. A cadeia produtiva vai das usinas que fornecem aço até concessionárias dedicadas à venda para os consumidores finais, seguindo por toda a rede de prestação de serviços que vem depois. Beira, portanto, a irresponsabilidade simplesmente rotular o segmento como velho e em conflito com a necessária melhoria do transporte coletivo.
O Inovar-Auto, ao criar um "Super IPI" com alíquota adicional de 30 pontos percentuais que só diminui mediante compromissos de nacionalização, teve seus efeitos positivos. Ampliou o parque industrial brasileiro para 23 montadoras, que têm capacidade de produzir até cinco milhões de veículos por ano, e multiplicou os investimentos em pesquisa e desenvolvimento na área de engenharia. As exigências de conteúdo local, contudo, eram absolutamente insustentáveis do ponto de vista legal e insuficientes para preparar o país aos desafios do futuro.
Pressionado pela decisão da OMC, da qual cabe recurso, o governo procura dar outro enfoque ao novo regime. Busca concentrar-se na eficiência energética como paradigma. Isso envolve taxação menor para carros elétricos, metas corporativas (para cada montadora individualmente) de emissões de gases-estufa e uma tabela de IPI com descontos progressivos aos veículos mais eficientes, bem como alíquotas adicionais para automóveis com baixo rendimento energético.
Logo na arrancada, porém, o plano bateu de frente com a resistência do setor privado e a ideia original do governo já foi suavizada. As grandes montadoras, que concentram a produção dos modelos populares, brigaram para incluir a cilindrada. Hoje as alíquotas são de 7% para motor 1.0, 11% a 13% (até 2.0) e 18% a 25% para carros acima de 2.0. Para esse grupo de empresas, usar como critério apenas a medição de quanto gasta o motor acabaria beneficiando veículos mais caros e com tecnologia mais avançada, penalizando os consumidores da faixa popular.
Outras iniciativas estão contempladas no programa, como padrões mais rigorosos de segurança veicular e maior racionalidade na cobrança de tributos federais. Uma das promessas feitas pelo governo é cobrar Imposto de Importação e PIS/Cofins apenas na etapa final da cadeia produtiva. Além de trazer facilidades para a própria Receita, que deixaria de fiscalizar o recolhimento em 700 fornecedores para concentrar-se só nas montadoras, isso deve aliviar também os pesados departamentos de contabilidade nas pequenas e médias empresas do setor.
De qualquer forma, a discussão que realmente importa é como preparar essa indústria para as transformações em andamento. A tendência é de adensamento da produção automobilística em poucos países. O simples fato de sermos um dos maiores mercados internos do mundo já nos converte em candidato natural para ser um desses polos. Se não houver ousadia suficiente para mirar além de objetivos imediatos, o Brasil correrá o risco de transformar-se em receptor de fábricas de combustíveis fósseis que forem desativados nas nações mais avançadas. Por isso, o Rota 2030 precisa engatar a marcha para subir a ladeira.
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