- Folha de S. Paulo
O escândalo em torno do ex-procurador Marcello Miller, cuja atuação nos dois lados do balcão no caso JBS é cada vez mais difícil de refutar, sugere avanço do mal degenerativo que acometeu a colaboração premiada no Brasil.
O poder que acusa não deveria interferir na produção de provas judiciais pelo candidato a delator. Autorizar que se cruze essa linha vermelha é expor o cidadão ao arbítrio dos flagrantes armados, típicos de regimes autoritários e aparelhos investigativos indolentes e descontrolados.
Deixar de punir com a anulação das provas esse desvio, uma vez comprovado, seria favorecer a disseminação pelo país dos conluios entre investigadores estatais e réus desesperados. Se o estímulo a pular a cerca é sedutor o suficiente para atingir a Procuradoria-Geral da República, essa tentação não será menor nos 27 órgãos acusadores estaduais.
A lambança na PGR compõe um quadro mais amplo de desequilíbrios. Permite-se no Brasil que se agreguem delatores indefinidamente a um mesmo tronco de acusações.
O ex-ministro Palocci, enrascado na Lava Jato, curvou-se ao poder gravitacional da "narrativa" da Procuradoria. Contará o que os investigadores querem sobre Lula, mesmo que isso não se enquadre bem no conjunto de evidências de que dispõe.
Adesões consecutivas criam uma inércia avassaladora contra quem, como o ex-presidente, não tem a quem delatar. Faz-se troça da linha de defesa de Lula, que atribui a outros ao seu redor a responsabilidade por ações suspeitas, mas essa parece ser sua melhor opção nesse quadro.
Talvez a liga a unir nas tramoias políticos poderosos a empresários próximos do Estado fosse tão resistente que apenas órgãos de controle dotados de superpoderes seriam capazes de rompê-la. Abalado o conúbio e exposta a chaga, é preciso agora cuidar um pouco mais das cautelas que, numa democracia, refreiam no Leviatã o seu instinto devorador.
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