- Folha de S. Paulo
Discurso religioso na política traz o risco de radicalização
Religião e política se misturam no Estado laico? Até certo ponto, isso é inevitável, como bem observou meu amigo Joel Pinheiro da Fonseca. Se estamos falando de um regime democrático, não há como impedir que o cidadão vote segundo critérios e valores ditados por sua fé. O eleitor só deve satisfação à sua própria consciência.
Embora a legislação eleitoral esboce algumas restrições, na prática não há nem mesmo como evitar que clérigos em geral e pastores em particular tentem capturar os votos de seus rebanhos para o candidato de sua preferência. Tudo isso é do jogo.
O que me preocupa quando o discurso religioso entra na política é que ele traz o risco de radicalização. Religiões frequentemente operam com conceitos absolutos. Se as Escrituras dizem que o aborto e o homossexualismo são pecado, como podem simples mortais duvidar da palavra imutável de Deus? Não discuto aqui a interpretação dos textos sagrados.
A lógica espiritual, ao introduzir absolutos morais, em alguma medida nega a própria política, que pode ser descrita como a arte da pacificação de conflitos por meio de negociações. Enquanto a lei positiva se justifica apenas por sua racionalidade, comporta gradações e pode ser objeto de soluções de compromisso, a lei divina se sustenta na noção de pecado, sempre definido por uma autoridade incontestável, e, por isso, assume a forma de pacotes inegociáveis.
Não estou afirmando aqui que todos aqueles que professam alguma fé estão fadados a comportar-se como fanáticos. Felizmente, a maioria das pessoas não leva a lógica religiosa às últimas consequências —e é isso o que torna possível a vida em sociedades multiculturais. Mas é inegável que um discurso que recorre a imperativos absolutos aumenta o risco de radicalização.
Esse é um problema para o qual não existe solução teórica. A democracia só sobrevive se as pessoas forem relativamente relapsas em sua religiosidade.
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