Por Jorge Felix | Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
SÃO PAULO - A oposição a Getúlio Vargas (1882-1954) é a origem do presidencialismo de coalizão no Brasil. O amálgama inusitado de sistema presidencialista, federalismo e um governo por aliança multipartidária data do fim do Estado Novo, em 1945, com um pequeno interregno entre setembro de 1961 e janeiro de 1963 e, obviamente, os anos de ditadura militar. Em 1988, na chamada Terceira República, o país assistiu à ressurreição do presidencialismo de coalizão em meio à busca por liberdades democráticas.
É assim que o cientista político e sociólogo Sérgio Abranches posiciona no tempo histórico o modelo político brasileiro, sempre culpado de todas as mazelas nacionais, sobretudo a corrupção. Seria isso mesmo? Em 30 anos, o pluripartidarismo cravado no artigo primeiro da Constituição teria sido incapaz de garantir governabilidade e, mais ainda, seus objetivos de melhorar as condições de vida da população?
Depois de estudar o tema há três décadas, quando publicou numa revista acadêmica da Universidade do Rio de Janeiro (Uerj) o artigo "Presidencialismo de Coalizão: o Dilema Institucional Brasileiro", sobre o período 1945-1964, Abranches considerou oportuno revisitar o modelo político brasileiro para um balanço de sua segunda encarnação. O resultado é o livro "Presidencialismo de Coalizão, Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro" (Companhia das Letras, 434 págs), uma ampla narrativa histórica-estrutural das duas fases. Diferentemente de detratores, tomados por uma boa dose de visão simplista sobre a política e a construção social, Abranches conclui pela defesa do potencial democrático do presidencialismo de coalizão para dar conta de toda a heterogeneidade brasileira e pede sua refundação por uma nova Assembleia Constituinte.
"Esse modelo político não é um ato de vontade, ele nasce de características sócio-estruturais arraigadas desde o Império no imaginário brasileiro que foram transferidas para a República", afirma. Abranches lembra o fetichismo do brasileiro com uma figura "forte" no poder, um personalismo imperial, mas concomitante a uma multiplicidade de visões da sociedade. O bipartidarismo provocado pela ditadura militar, atesta o sociólogo, é contrário à natureza social brasileira e foi totalmente artificial. "O presidencialismo de coalizão, em 30 anos, mostrou-se resiliente e mais forte do que aquele no qual foi inspirado, surgido em 1945, mas é um modelo que respeita a diversidade brasileira", diz.
A democracia representativa está em crise, analisa Abranches, em todo o planeta. Aliás, seu livro inicia com essa lembrança ao leitor. Logo, é difícil atribuir culpa pela crise atual ou pelas crises recentes brasileiras, desde o impeachment de Fernando Collor em 1992, ao presidencialismo de coalizão. Se o parlamentarismo, em 1993, tivesse saído vitorioso do plebiscito, segundo o sociólogo, o Brasil também teria um "parlamentarismo de coalizão".
Em "A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século XX", seu livro anterior, Abranches aponta para o problema mundial de a hipertrofia do capital financeiro, verificada desde os anos 70, enfraquecer cada vez mais as democracias. "O capital financeiro globalizado impõe um ciclo fiscal totalmente diferente daquele exigido por partidos de centro-esquerda mais preocupados com o social, então, havia uma alternância de poder com governos de direita que baixavam impostos dos capitalistas e reduziam gastos sociais. Era um ciclo. Esse circuito, em boa parte do mundo, foi interrompido pelo mercado. Agora está sendo restaurado em vários países, Portugal, por exemplo", diz. Aqui mesmo no Brasil, Abranches vê os candidatos a presidente reconhecerem aspectos cruciais na questão fiscal, que haviam sido esquecidos, ou sociais, até então desprezados.
Neste livro, o sociólogo, embora sem abandonar essa visão do impacto da metamorfose do capitalismo financeiro planetário nas democracias, prefere dar mais destaque para a regularidade de padrões pelos "elementos endógenos" e as "descontinuidades relevantes" suscitadas pelo presidencialismo de coalizão. Abranches preocupa-se em enumerar os avanços proporcionados pelos governos multipartidários em três décadas. Se a democracia vai mal e se o país ainda apresenta indicadores sociais sofríveis em educação, saúde, habitação, saneamento básico e infraestrutura, é bom lembrar de onde partimos desde 1988.
"É preciso também olhar seus pontos fortes, sua efetividade, suas qualidades e suas conquistas", escreve. Se o presidencialismo de coalizão tem falhas estruturais, lembra Abranches, todo sistema as tem. A questão é que as distorções ou vícios estão longe de serem obrigatórios. "As coalizões podem ser formadas por métodos legítimos de negociação de programas e valores, livrando o presidencialismo de coalizão de tais vícios."
Neste momento, porém, embora o modelo político apresente "déficits que estão se aprofundando", Abranches considera perigosa uma Assembleia Constituinte ou, como ele rebatiza, "Reconstituinte". Em primeiro lugar porque sua ideia de refundação normativa é ampla, não apenas do sistema político, mas também fiscal, tributário e federativo. Em segundo lugar, porque o ambiente político cristalizado em extremos só agravaria a crise política sem eficiência para um promissor pacto social.
"Não é o momento adequado para revisão constitucional. Isso requer normalidade de convivência política e social, o que não existe atualmente", afirma. O resultado da eleição parlamentar deste ano também seria um impeditivo. "Eu lembro de uma famosa frase do Doutor Ulysses [Guimarães]: 'Se você acha essa legislatura ruim, espera para ver a próxima'."
O livro agenda uma outra revisão antes da Constituinte. A das forças políticas. Na visão do autor, a negação da corrupção sistêmica no âmbito da política, em particular do financiamento de campanhas, faz mal para a democracia e para os partidos. Seria necessário um autoexpurgo. "Fere mais mortalmente a esquerda do que a direita. Esta última não se avexa de viver na fronteira da ilegalidade. A esquerda, se não repensar e não se refundar, perderá a legitimidade e a luta moral, rendendo-se à direita clientelista ou cedendo a hegemonia ao liberalismo conservador."
Mais uma vez essa atitude independe de mudança do modelo político, o que faz Abranches reforçar sua tese: "Imaginar que, se substituirmos o presidencialismo de coalizão por outro modelo político, resolveremos nossos problemas de fundo e estrutura é uma ilusão que pode ter consequências contrárias".
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