Por Helena Celestino | Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Foi sob uma saraivada de críticas que Mark Lilla, professor da Universidade Columbia, lançou nos EUA o livro "O Progressista de Hoje e de Amanhã", editado no Brasil pela Companhia das Letras. Sua tese é que os movimentos identitários - negros, feministas, LBTGQI, latinos - distorceram a mensagem do Partido Democrata, aprofundaram a polarização no país e levaram à vitória de Donald Trump. Rotulando-se como democrata da fase em que o partido estava conectado com os trabalhadores, Lilla ouviu impávido as acusações de que seu livro era só uma defesa dos privilégios de homens e brancos. "Os ataques só provam que eu tenho razão", responde Lilla, que vem ao Brasil em novembro para participar do Fronteiras do Pensamento.
Valor: O senhor diz que os liberais se perderam ao entrar num pânico moral sobre identidade de raça, gênero e sexo. Mas acha justa a luta desses movimentos pela igualdade. Como um partido progressista pode equilibrar isso?
Mark Lilla: Temos de separar dois tipos de política de identidades. Uma são grupos reivindicando seus direitos porque não estão sendo tratados como cidadãos iguais. Nesse caso, a identidade mobiliza as pessoas porque têm experiências comuns a dividir e, juntas, fazem uma reivindicação democrática. O tipo de movimento identitário atual nos EUA não é político, mas cultural. Não é por direitos, mas por reconhecimento e para garantir exceções. Por exemplo: o Black Lives Matter, grupo importante, chamou atenção pública para o fato de a polícia matar negros ilegalmente. Mas depois começaram a protestar contra Hillary Clinton porque não reconhecia as reivindicações específicas deles como grupo. Ou seja, acabaram numa espécie de política narcisista, voltada só para o seu grupo. Tem sido assim: cada grupo exige reconhecimento para a sua reivindicação, sem compartilhar com a sociedade a busca por projeto comum, todos achando impossível viver juntos.
Valor: Para o senhor, a fixação na diversidade criou uma geração narcisista, pouco interessada no resto do mundo. Mas a luta do Black Lives é ampla.
Lilla: Mas não compreendem que política baseia-se em fazer demandas como cidadãos e entender os outros cidadãos, desenvolvendo sentido de solidariedade. Não é questão de construir ideais, o que aconteceu é que houve desconstrução do cidadão para dois tipos de individualismo: o individualismo identitário no lado dos democratas e o individualismo financeiro no lado dos republicanos. Isso significa que ninguém está falando no bem público. Mas nosso destino está ligado, isso é uma realidade, não um ideal. Por isso, o lado democrata deve focar antes no bem público e em coisas que afetam a maioria. Os grupos que querem mudanças deveriam compartilhar suas reivindicações como cidadãos, e não com base em suas diferenças. Por exemplo: um homem branco, ex-empregado da indústria automobilística em Detroit, está zangado com o que aconteceu com a economia. Um homem negro de classe média, em algum outro lugar, é parado pela polícia enquanto estava dirigindo e acha que foi porque é negro. São dois grupos diferentes frustrados em suas identidades. Em vez de focarmos nas diferenças entre eles, podemos articular uma visão maior do país, baseada em princípios básicos, como a solidariedade. Isso seria dizer para o desempregado branco que temos responsabilidade coletiva sobre o seu desemprego e vamos ajudá-lo a achar emprego. E manifestar solidariedade ao motorista negro dizendo que todo mundo deve ser tratado de forma igual pela polícia e pela lei.
Valor: Essa não é a mensagem de Trump.
Lilla: Não, Trump aponta nessa direção. Partiu da ortodoxia republicana dizendo que precisamos cuidar dos trabalhadores americanos, não simplesmente deixar a economia ficar zanzando para lá e para cá pelo mundo. Isso é uma grande sacada do lado dos republicanos: ele estava falando em nosso interesse comum. O lado sombrio que está por trás é que não se interessa pela vida dos negros atacados pela polícia. Acho que a grande atração de parte dos eleitores por Trump é que finalmente reconheceu publicamente os problemas na economia sobre os quais os republicanos se recusavam a falar.
Valor: O senhor diz que os movimentos sociais estão tomando o lugar dos partidos, mas isso não é consequência da crise da representação política, da desconfiança nos políticos?
Lilla: A adesão dos eleitores a movimentos políticos tem a ver com a Guerra do Vietnã e a luta pelos direitos civis, em que os militantes saíram dos partidos porque não tiveram as reivindicações atendidas. Passaram a organizar protestos e a acionar os tribunais em busca de decisões legais. Os partidos americanos são herança de um mundo de antes da Segunda Guerra. Com as mudanças nas classes sociais, não existem mais partidos que correspondam aos principais grupos na sociedade. A crise no sistema partidário que vejo é que não está ajustado à nova paisagem social.
Valor: Para o senhor, os democratas perderam a eleição por causa do discurso identitário, mas os republicanos também não ganharam. Trump é um outsider. Foi a política a derrotada?
Lilla: Concordo. Aconteceram mudanças sociais, a clivagem nas sociedades não é mais representada por esses partidos como no passado. No sistema democrático, exige-se tempo para os partidos se adaptarem ou para um novo partido nascer. Vejo um momento de transição: na Europa, os eleitores franceses abandonaram o partido comunista para votar na Frente Nacional, e os italianos, para votar na Liga. Todas as ideias deles sobre a sociedade não sensibilizam mais as pessoas. Isso acontece na história quando as mudanças são rápidas demais. No século XIX, quando a América ficou mais industrializada, os democratas e republicanos, mais ligados à sociedade agrícola, tiveram dificuldade de se adaptar, mas mudaram. Com isso, os republicanos transformaram-se no partido dos banqueiros nas cidades, os democratas viraram o partido dos imigrantes. Leva tempo para as instituições alcançarem as sociedades.
Valor: A maioria dos analistas diz que a resposta à crise econômica de 2008 foi a responsável pelo crescimento da extrema direita na Europa. Acha que foi o caso de Trump?
Lilla: Foi a crise e mais todos os fatos que levaram à crise. Foi um fenômeno maior. Vimos um país dividido em relação ao cosmopolitismo. Temos um lado sociocultural nessa crise, uma elite cultural confortável com as mudanças e a diversidade no mundo. São eles que mais ou menos controlam nossas instituições culturais: mídia, universidades, Hollywood. Dão ao país um retrato do que acham que o país é, mas não focam em largos estratos da América. Um a cada cinco americanos se diz evangélico, mas nunca vemos personagens evangélicos nos filmes americanos. Vemos transgêneros, que são 1% da sociedade. O povo que não compartilha esse campo de valores cosmopolitas não só foi desrespeitado como desprezado pelas pessoas que querem mudar a sociedade. Eles mostraram que estavam aborrecidos porque não tinham espaço nessa sociedade.
Valor: Os EUA abandonaram o sonho americano e assumiram a palavra de ordem "América Primeiro". Nesses dois anos de governo, qual o impacto de Trump no imaginário americano?
Lilla: É cedo para dizer. Todos queremos saber, mas as eleições parlamentares de meio de mandato [em novembro] são uma medida ruim para saber onde o país está: no sistema federativo são questões locais que dominam a campanha, não os problemas nacionais. Em 2020 saberemos se Trump foi só um fora da lei, alguma coisa que acontece num sonho ruim e o país vai voltar para onde estava antes. Lá saberemos se o público americano vai se acalmar e os "adultos" voltarão ao poder. Sabemos é que toda a adesão a Trump em 2016 foi subestimada, mas não sabemos quantos americanos não se importam com as normas democráticas, quantos ficaram mais preguiçosos com as questões sociais, mais xenófobos. A pergunta é se Trump só catalisou isso, fez isso explodir e se radicalizar, ou se essa é a Nova América. Só saberemos em 2020.
Valor: Na próxima eleição, haverá número recorde de mulheres candidatas e candidatos da ala esquerda dos democratas. O que acha disso?
Lilla: É ótimo, mas as novas candidatas que vêm de diferentes grupos defendem todas as mesmas políticas, em vez de apresentarem propostas econômicas ou sobre saúde e serviço público. É perfeito ter um grupo de pessoas muito diversas disputando cargos, mas queria que tivessem propostas comuns sobre o bem público, em vez de fazerem isso separadas. Todas moram em Estados já democratas e, pela nossa lei eleitoral, o fato de ganharem votos na Califórnia ou Nova York não muda nada nacionalmente. Teriam de fazer campanha em Estados republicanos entre as mulheres brancas que moram nos subúrbios de cidades do Meio Oeste e do Sul: essas são as pessoas que deveriam ser atingidas na campanha, são as mais fáceis de serem persuadidas pelas novas candidatas.
Valor: Os democratas farão maioria no Parlamento?
Lilla: Pode acontecer, mas não acredito que farão maioria no Senado. Acho muito provável que façam maioria na Câmara, o que já é ótimo para parar Trump.
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