- O Estado de S.Paulo
Em livro politicamente consistente e relevante, coletânea de artigos de Luiz Sérgio Henriques
Acaba de ser publicado um livro politicamente consistente, em dias de volatilidade e inconsistência nesse âmbito. Trata-se do Reformismo de Esquerda e Democracia Política, de Luiz Sérgio Henriques, colaborador frequente de O Estado de S. Paulo, que desde 2010, quando ainda não sopravam ventos tão sinistros, denuncia a fragilidade do conhecimento que a esquerda acumulou sobre nós mesmos e sobre o Brasil. E o faz sem dramaticidade, sem mobilizar o pathos que sempre espreita momentos liminares. A forma que Luiz Sérgio imprimiu à sua reflexão é a da crônica política - uma forma praticada por mestres do jornalismo, que consiste em se debruçar sobre o presente imediato para logo extrapolar essa limitação temporal e trazer à tona questões maiores e mais profundas, de que a conjuntura é apenas um sintoma. Texto maravilhoso, superfície sem crispações, sobre um fundo de temas árduos, que revolve antagonismos e disputas.
O livro contém 60 artigos selecionados entre outros tantos que Luiz Sérgio escreveu no período de 2010 a 2018. Eles foram organizadas cronológica e tematicamente, pois o autor conferiu a cada um desses anos o título de um dos artigos do período, revelando o andamento das suas preocupações ao longo do tempo.
Em 2010, por exemplo, ano em que Lula concluiu seu segundo mandato presidencial e se disse capaz de eleger um poste, destaca-se reflexivamente, para Luiz Sérgio, a narrativa fundacional com que o PT irrompeu na cena política e proclamou a nova história do movimento operário e do País - uma história desde baixo, movida por um partido que se concebe como expressão pura do social “contra a mediação representada pelas formas elitistas da política” (pág. 45). O título Que esquerda é esta? dialoga, então, com a ambivalência do PT em relação às instituições da democracia política e às mudanças processuais, incrementais, que podem advir do alargamento da base de massas do Estado Democrático de Direito. Para o autor, essa ambivalência e suas consequências práticas trazem riscos de retrocesso político, mesmo quando encarnada - ou até por isso - num novo cavaleiro da esperança.
Já em 2018, “quando os sinais de alarme soam com estridência” (pág. 291) anunciando a crise da democracia política tal como até então a conhecíamos, Luiz Sérgio arrola os traços dessa dinâmica em curso no mundo. Destaque-se, nesse passo, a perspectiva cosmopolita do autor, que atenua o provincianismo dos debates locais e situa nossas aflições brasileiras num mundo em profunda mutação. A eleição de Donald Trump, em 2016, é um desses traços, evidenciando a corrosão da coesão social norte-americana e a produção de um padrão de enfrentamento político que interrompe o processo de fortalecimento contínuo de pautas ambientais e de gênero, com impacto planetário.
Na Europa, os problemas não são menores; e mesmo a Itália, “de rica tradição de esquerda” (pág. 292), conhece a emergência majoritária da extrema direita, perante a qual o próprio Silvio Berlusconi pode ser tomado como um exemplo de moderação.
Mas é na América do Sul que as democracias constitucionais se encontram em avançado estado de degradação. O abandono da ideia de centro político; a aposta na contraposição entre povo e elites - essas elites compreendendo as “reacionárias classes médias”; a tentativa de se perpetuar no poder, cometendo, para isso, os métodos da burla marqueteira, da cooptação, da demonização dos adversários, para não mencionar a corrupção em escala transnacional, são algumas práticas que ali têm curso.
Na Bolívia, lembra o autor, contra o veredicto formal de um plebiscito, a manutenção do mesmo mandatário foi justificada pelo respeito que ele devota aos direitos humanos. E a crise humanitária na Venezuela é uma tragédia que desonra todas as esquerdas.
Portanto, não serão a divisão e o confronto que poderão reinventar a democracia política no subcontinente, o Brasil incluído.
Sob o título Karl Marx e o nosso tempo, os artigos de 2018 traduzem a crença de Luiz Sérgio em que no Ocidente - continente político em que nos situamos - a democratização do Estado como processo permanente, combinado com a auto-organização da sociedade, darão sentido e potência às democracias constitucionais, hoje sob o ataque de autoritários de direita e de esquerda.
Como se vê, o tema da democracia política - e do papel da esquerda para o seu aprofundamento - é o fio que perpassa os artigos selecionados. Neles, a despeito de reconhecer a tensão constitutiva do binômio democracia/esquerda, o autor reafirma a contribuição das lutas sociais e políticas para a ampliação das liberdades e para o ingresso da grande massa de excluídos no mundo dos direitos. Não há que falar, portanto, como ainda o faz parte significativa das forças de esquerda, em democracia burguesa, a que opõe a miragem insurrecional de ataque ao poder. Segundo o autor, a dicotomia direita/esquerda definitivamente não esgota os conflitos da vida social. E as sociedades contemporâneas, quando não são suicidas, têm aprendido a construir valores e instituições que relevam o bem comum. Por isso, a visão puramente instrumental da democracia e a atitude desdenhosa em relação ao caminho processual das reformas jamais estarão à altura dos desafios da hora.
Com esse livro extraordinário, cuja relevância é ainda mais visível no contexto em que nos encontramos, Luiz Sérgio Henriques não apenas requalifica seus predicados como pensador da cultura e da política contemporâneas, como fixa um caminho programático para todos aqueles que entendem ser indispensável a renovação da esquerda brasileira para a consolidação e dignificação da nossa democracia política.
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*Socióloga, PUC-Rio
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