- Folha de S. Paulo
O relógio presidencial deveria estar marcando horas, mas marca segundos
Tomando como exemplo os EUA e a Inglaterra, Joaquim Nabuco apontou diferenças marcantes quanto ao papel da opinião pública sob o presidencialismo e o parlamentarismo: “Comparado os dois governos, o norte-americano ficou-me parecendo um relógio que marca horas da opinião, o inglês um relógio que marca até os segundos”.
O pulso da opinião pública manifesta-se na formação e estabilidade dos gabinetes —é ele que rege as moções de desconfiança e com elas o calendário eleitoral. No presidencialismo, a opinião pública importa apenas nos anos eleitorais. E isso se reflete no Poder Legislativo que converte-se em “teatro para os debates, mas esse debates são como prólogos não seguidos de peças; não trazem nenhum desfecho, porque não se pode mudar a administração”. (Bagehot citado por Nabuco).
O mesmo se dá com a ação da imprensa: “o Times tem feito muitos ministérios; nada de semelhante se podia dar na América. Ninguém se preocupa dos debates do Congresso, eles não dão resultado algum, e ninguém lê os longos artigos de fundo, porque não tem influência sobre os acontecimentos”.
O modelo parlamentar clássico, referência de Nabuco quando escrevia essas linhas em 1900, sofreu transformações com o advento da democracia de massas nos anos 30 (quando os partidos substituem os notáveis), que por sua vez transmudou-se, nos anos 80, em um modelo mais personalizado (a democracia de público), no qual os partidos perderam força. A democracia de redes atual —uma espécie, selvagem de democracia sem mediações— radicaliza essa transformação e cria tensões nunca vistas.
A imprensa, que precedeu os partidos, também mudou: perdeu ao longo do século 20 a virulência partidária original e profissionalizou-se; mas sofre o impacto devastador das redes. Se não contava tanto em regimes presidencialistas, seu impacto é ainda menor agora.
A dinâmica de formação de governos, contudo, permanece inalterada e a sabedoria de Nabuco continua válida. Boris Johnson acaba de ser derrotado por uma maioria parlamentar movida pela opinião pública. Maiorias voláteis, eleições incertas.
Já entre nós, o presidente Bolsonaro deu seguimento a avalanche de incivilidades que desata desde sua posse, e que se reflete em sua declinante popularidade. O ano não é eleitoral, mas a campanha perpétua continua: o bolsonarismo não busca aumentar a sua influência horizontalmente em direção ao centro, mas dar musculatura a seus militantes. Na ausência de uma tempestade perfeita, resta especular sobre o impacto da impopularidade nas eleições presidenciais de 2022, nada mais.
O relógio presidencial deveria estar marcando horas, mas marca segundos.
*Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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