Polarização inoperante – Editorial | O Estado de S. Paulo
Ainda que parte considerável das forças da esquerda queira partir para o revanchismo, em relação tanto ao resultado das urnas como a decisões da Justiça, é cada vez mais evidente que ela não consegue levar adiante o seu intento. O problema não é que a agenda dos partidos de esquerda seja anacrônica - ela é absolutamente incompatível com o temperamento dos brasileiros e com a realidade política e social do País.
O mesmo se pode dizer de outras forças radicais. A direita, por sua vez, tem sido incapaz de ir longe na pregação de seu catecismo fundamentalista. Sua pauta é igualmente retrógrada. Almeja, por exemplo, o retorno a um mundo pretérito, marcado pelas tensões da guerra fria, no qual a sociedade deveria concentrar todos seus esforços para combater o insidioso inimigo, o comunismo. O intento nem ao menos tem o idealismo do Quixote, espetando sua lança no moinho.
O fenômeno que ocorre com as extremas, da esquerda e da direita, tem, no entanto, consequências daninhas para todo o País. Diante do inevitável fracasso de suas respectivas pautas, os apoiadores de cada lado tendem a aumentar seu extremismo, imaginando que a inoperância de suas agendas é causada pela aplicação mitigada ou imperfeita de suas propostas e ideias. Nessa lógica, a solução residiria em aumentar a intensidade do radicalismo - e esta é a melhor receita para extirpar da vida política e social do País qualquer vestígio de racionalidade.
Nessa trajetória de polarização, é frequente que esses grupos persigam parte de seus próprios adeptos, tachando-os de traidores ou desertores. Buscam, assim, apontar uma causa para seu fracasso. Outro subproduto da inoperância das agendas extremistas, como já dissemos, é o recrudescimento do ressentimento de seus membros. Sentem-se profundamente frustrados em seus anseios de encaixar o mundo - o Estado, a sociedade, a família, a empresa, o vizinho, o colega de trabalho - no atraso de sua ideologia.
Tal polarização afasta interlocutores inteligentes e produtivos e leva os grupos militantes à infertilidade dos diálogos consigo mesmos, com drásticos prejuízos políticos, econômicos e sociais para todo o País. Diante desse cenário, impõe-se um diagnóstico lógico e cristalino: os problemas nacionais encontram-se desprovidos de resposta. E, caso o debate público continue interditado por grupos militantes extremistas, esses problemas permanecerão sem resposta.
O País precisa urgentemente de caminhos concretos, com propostas de curto, médio e longo prazos, para enfrentar os prementes desafios do crescimento econômico, do emprego, da educação, da saúde, do saneamento e de tantas outras áreas. Essas soluções não virão, no entanto, por passe de mágica. Elas são decorrência do estudo, do diálogo e da negociação - e os grupos militantes extremistas não estão dispostos a percorrer nenhuma dessas etapas. Esse é o grande drama da polarização - inviabiliza as soluções.
A polarização tem atrapalhado o governo do presidente Jair Bolsonaro. É nítida sua dificuldade para apresentar propostas para os problemas reais, bem como para estabelecer com as diversas forças políticas um diálogo capaz de gerar soluções. Ao longo desses oito meses de governo, ele optou por privilegiar uma pauta ideológica, dirigindo sua ação e seu discurso a um grupo cada vez mais restrito de seguidores. Em vez de colocar o seu governo a serviço de todos os brasileiros, o presidente Jair Bolsonaro aninhou-se numa ponta do espectro político, o que causa prejuízos não apenas internamente, mas também nas relações do Brasil com a comunidade internacional.
A população já percebeu esse modo de proceder do presidente Bolsonaro e está cada vez mais insatisfeita, como se vê pelas pesquisas de opinião. Mas a oposição que poderia corrigir os desvios do governo mal existe. Governo e oposição, imersos em suas concepções reducionistas, não estão preocupados com a realidade e muito menos em dar resposta aos problemas reais. O País fica à deriva.
Boa imagem internacional dá lugar à diplomacia da ofensa – Editorial | Valor Econômico
O presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, inauguraram um novo tipo de relacionamento com o mundo: a diplomacia da ofensa. A sucessão de confrontos públicos com nossos parceiros na arena global trouxe como maiores consequências, até agora, um desgaste de imagem e um constrangimento desnecessário ao Brasil no exterior. Quem dera fosse tão simples como a literatura das redes sociais imagina: uma defesa corajosa da soberania brasileira, colocando líderes estrangeiros em seus devidos lugares. Esse clima de rivalidade futebolística serve para inflamar a militância, mas descombina com a complexidade das relações internacionais.
Começou como descuido - não como grosseria. Nos preparativos para a campanha eleitoral, Bolsonaro fez com os filhos um giro pela Ásia e visitou Taiwan. A China, que não reconhece a independência da ilha, advertiu que isso representava uma afronta à sua "integridade territorial" e causava "eventuais turbulências" na parceria entre os dois países.
Depois, Bolsonaro passou a campanha repetindo que os chineses "não estão comprando no Brasil, estão comprando o Brasil", numa mensagem provocativa aos maiores compradores de produtos brasileiros e responsáveis por investimentos de US$ 80 bilhões acumulados no país desde 2003. Em aula magna aos calouros do Itamaraty, Araújo deu sequência: o Brasil não vai vender sua alma à China para exportar soja e minério de ferro.
Até aí, só uma estratégia certamente polêmica, talvez pouco eficaz, mas vida que segue. O mal estar foi contornado por um diálogo mais ameno nos bastidores e pela viagem oficial do vice-presidente Hamilton Mourão a Pequim. De mais a mais, Bolsonaro avisou desde seu discurso de posse que não era fã do "politicamente correto". E Araújo argumenta com frequência: a política externa não pode estar alheia à vontade das urnas, não pode curvar-se ao estamento burocrático, tornar-se refém do prestígio do Itamaraty e evitar mudanças de orientação.
Nada disso deve ser confundido com uma carta branca para giro tão inútil - da tradição conciliadora da diplomacia brasileira para o festival de ignomínias visto nas últimas semanas. Um dos alvos, a Argentina, compartilha com o Brasil um projeto de integração exitoso em substituir a desconfiança militar por mais comércio e investimentos mútuos - que trazem paz e estabilidade a reboque. Diante da expectativa de vitória da esquerda e retorno ao poder do kirchnerismo, Bolsonaro alertou que, "se a esquerdalha voltar, poderemos ter no Rio Grande do Sul um novo Estado de Roraima".
Em mais uma escalada nas diatribes, o presidente atacou na semana passada a chilena Michelle Bachelet, ironizando a posição política de seu pai "comunista", que foi preso e morto sob custódia, após tortura, por ter se oposto ao golpe de 1973. O Chile assinou recentemente um amplo tratado de livre comércio com o Brasil, que aguarda ratificação nos dois lados, e suas empresas têm um estoque de US$ 35 bilhões investidos no mercado brasileiro. Tido como um aliado de Bolsonaro na América do Sul, o presidente Sebastián Piñera se viu forçado a manifestar repúdio pelas falas de seu colega brasileiro.
As seguidas afirmações desrespeitosas ao francês Emmanuel Macron e a sua esposa, bem como menções de desprezo à bem-sucedida cooperação com Alemanha e com a Noruega na área ambiental, completam as ofensas.
Seria absurdo, apesar do grave retrocesso na política de combate ao desmatamento, aceitar passivamente a tentativa de levar ações sobre a Amazônia ao G-7 sem efetiva participação do Brasil. Havia, inclusive, boas razões para suspeitar que Macron estava motivado por interesses protecionistas e de olho em reconquistar apoio interno para uma eleição que se avizinha na França.
Mas o tom da reação aos europeus, junto com as assertivas desastradas sobre os vizinhos sul-americanos, dinamita pontes e contamina o futuro das relações. São relações sólidas, que não se desmancham do dia para noite, mas o mau humor com o Brasil vai ferindo progressivamente nossa imagem de conciliação e bom diálogo com todos.
Para um país com recursos tão limitados de poder, sem protagonismo econômico ou militar, a maior aposta para ser ouvido no mundo é reforçar a credibilidade, o que só o tempo e a estabilidade de posições conferem. É isso, além da indiscutível qualidade de seus quadros, o que torna o Itamaraty um serviço exterior tão prestigiado. Mudanças súbitas de postura precisam ser avaliadas com extremo cuidado. E grosserias devem ser condenadas.
Rumo ao teto – Editorial | Folha de S. Paulo
É preciso preparar ajuste para quando a despesa do governo chegar ao limite
Congresso e sociedade receberam com apreensão a proposta orçamentária federal para 2020. Além de projetar déficits até o final do mandato de Jair Bolsonaro (PSL), a peça mostra que se aproxima o momento em que acabará o dinheiro necessário para manter a máquina pública em operação.
Estão previstos gastos de R$ 1,48 trilhão no próximo ano, excluindo juros. Nada menos de 94% desse montante tem destino obrigatório por lei ou na prática —na maior parte, para salários, aposentadorias e benefícios sociais.
Sobram R$ 89,1 bilhões para o livre manejo do governo, incluídos aí ínfimos R$ 19 bilhões em investimentos. Essa tendência, se persistente, eleva o risco de paralisia de atividades essenciais.
Daí surgirem pressões no sentido de flexibilizar o teto de despesas inscrito na Constituição, que impede o crescimento acima da inflação do desembolso total. Para os críticos, o dispositivo se mostra draconiano, dado que a expansão contínua dos pagamentos obrigatórios força a asfixia da já diminuta parcela restante do Orçamento.
Até Bolsonaro deu margem a dúvidas quanto a seu compromisso com a regra de austeridade, mas felizmente voltou atrás.
A ofensiva se baseia, afinal, em um diagnóstico impreciso. Os cortes de gastos promovidos neste ano, por exemplo, decorrem não do limite constitucional, mas da meta fixada para o saldo das contas do Tesouro Nacional —um déficit não superior a R$ 139 bilhões.
Como a atividade econômica e a arrecadação tributária apresentam desempenho abaixo do esperado, o governo acaba por reduzir seu dispêndio a um patamar inferior ao estipulado pelo teto.
É fato que, mantidas as coisas como estão, nem uma recuperação vigorosa da receita evitará o colapso administrativo em dois ou três anos. A questão reside no que ocorrerá quando a despesa estiver prestes a ultrapassar o permitido.
Pelo texto constitucional, essa condição faz dispararem gatilhos de ajuste nas despesas obrigatórias, como a proibição de aumentos salariais e contratações.
Entretanto já se identificaram fragilidades nesse sistema. Uma falha de redação, por exemplo, impede que o governo elabore um Orçamento com gastos acima do teto –assim, não há como acionar os gatilhos. É provável, ademais, que as medidas corretivas previstas se afigurem insuficientes.
A solução não passa por afrouxar o controle fiscal, o que tornaria ainda mais perigosa a trajetória da dívida pública. Pelo contrário, cumpre dotar todos os níveis de governo de meios mais eficazes de ajuste nas contas. O Estado brasileiro, infelizmente, não deixará tão cedo a situação de emergência.
Partidos políticos enriquecem no país em crise – Editorial | O Globo
Estrutura dispendiosa contrasta com fiscalização frágil, inviabilizada pela legislação
Líderes do Congresso pretendem aproveitar o habitualmente confuso processo de aprovação da lei orçamentária para elevar a mais de R$ 3 bilhões o total de recursos destinados aos partidos em 2020, ano de eleições municipais.
O enredo é antigo, com desfecho invariável, mas o calendário eleitoral estimula a imaginação na direção do enriquecimento de organizações, com privilégios crescentes aos chefes da burocracia partidária no manejo de dinheiro público, sob rarefeita fiscalização e cada vez menos sanções.
Na semana passada, a Câmara aprovou um projeto de lei, por 263 votos contra 144, com uma série de benefícios às cúpulas das três dezenas de partidos com representação no Legislativo. Há mais sete dezenas à espera de registro na Justiça.
O caso expõe uma estrutura partidária inflada, cara, sem controle, que se mostra incapaz de se reinventar depois do choque de revelações sobre sua intimidade financeira proporcionado pela Lava-Jato.
Uma das novas regalias é o uso de recursos públicos, no fundo partidário, para custear a assistência jurídica de lideranças partidárias com problemas na Justiça.
Assim, o chefe de um partido político que, eventualmente, tenha sido condenado e preso por corrupção em contratos com empresas estatais ou governos federal, estaduais e municipais poderá ter a sua defesa judicial totalmente financiada pelo Erário fraudado.
Em tese, pune-se duplamente a vítima — no caso, a sociedade. Ludibriada numa operação de corrupção, como as desveladas pela LavaJato, será obrigada a pagar a defesa do agente político, que deveria ser um problema privado. Pelo projeto, esses casos seriam enquadrados na rubrica de gastos “de interesse direto ou indireto” dos partidos. Hoje, despesas dessa natureza são questionadas pela Justiça Eleitoral.
É grande o volume de dinheiro anualmente destinado aos partidos. Já a fiscalização é bastante restrita, frágil e praticamente inviabilizada pelas mudanças introduzidas na legislação a cada dois anos.
Desta vez, o leque de benesses foi excessivamente ampliado, a despeito da crítica situação das finanças nacionais. O texto aprovado na Câmara permite, entre outras coisas, que os chefes das burocracias partidárias possam usar dinheiro público para compra de bens, construção ou edificação em qualquer município onde queiram instalar a sede da organização.
O projeto contraria o bom senso, para se dizer o mínimo, num país em grave crise fiscal, com mais de 12 milhões de desempregados nas ruas, um déficit público estimado em R$ 139 bilhões neste ano e uma série de investigações sobre corrupção político-partidária ainda em andamento. Espera-se que o Senado, agora, faça as correções necessárias. Seria prudente e de interesse coletivo. Até para se evitarem novos escândalos.
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