- O Globo
Quando eleitores se derem conta de que a luta de Bolsonaro contra a corrupção era da boca pra fora, seu prestígio vai desabar mais
Há duas semanas, escrevi um artigo sobre o desmonte da Lava-Jato. A tese era esta: os três Poderes investiam contra ela: STF, Congresso e Bolsonaro. Isso sem contar o desgaste produzido pelo vazamento no site The Intercept.
O ataque mais vigoroso partiu do presidente do Supremo, Dias Toffoli. Ele proibiu o Coaf de compartilhar dados com os órgãos de investigação, exceto em casos em que a Justiça autorize. Recebeu o apoio de Bolsonaro, porque sua decisão foi tomada precisamente para atender a um recurso de Flávio Bolsonaro, investigado a partir da movimentação atípica de seu funcionário Fabrício Queiroz. O Supremo voltaria a atacar, anulando a condenação do ex-presidente do BB e da Petrobras Aldemir Bendine.
Na trincheira do Congresso, foi votada a lei de abuso de autoridade. É uma lei que contém artigos abstratos como, por exemplo, o que pune prisões sem base legal. É um problema de interpretação. Se faltar base legal a uma prisão, as instâncias superiores a suspendem. Por que criminalizar o juiz que considerou haver base legal?
Os 36 vetos de Bolsonaro indicam o nível de discordância da lei de abuso. Mas os vetos não atenuam seu apoio a Toffoli e as consequentes mudanças que realizou no Coaf.
O problema central são investigações sobre dinheiro. Elas não envolveram apenas Flávio Bolsonaro, mas também as mulheres de Toffoli e Gilmar Mendes. O título do meu artigo era “Desmonte em família”.
Reconheço agora que faltou um elo nessa corrente que, talvez, não queira acabar com a Lava-Jato, por causa da repercussão negativa, mas apenas neutralizá-la, impedir que chegue a alguns recantos do poder. Esse elo é a própria Procuradoria. Parece que Raquel Dodge se sentou em cima de alguns processos, e a renúncia coletiva dos procuradores é uma veemente denúncia dessa cumplicidade dela com o esquema de desmonte.
O conflito entre ela e procuradores surgiu na delação do empreiteiro Léo Pinheiro, da OAS. Ela retirou as partes que atingiam o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o irmão de Toffoli, ex-prefeito de Marília, São Paulo.
De novo, a família de Toffoli na parada. Ao suspender as investigações com base no Coaf, ele protegeu Flávio Bolsonaro, a mulher de Gilmar e a dele próprio. Agora é seu irmão que entra na cena do desmonte.
Dizem alguns jornais que Toffoli e Maia faziam campanha para Raquel Dodge continuar no cargo. Bolsonaro não aceitou essa alternativa.
Ele quis alguém em quem pudesse confiar. Mesmo que seu escolhido tenha a oposição dos procuradores, é preciso alguém que engavete processos embaraçosos e seja duro com as minorias.
Não há nenhuma surpresa na hostilidade de Bolsonaro às bandeiras que abominava desde a campanha. A novidade é ter se integrado ao esquema que quer desmontar a Lava-Jato. Seus defensores acham que colocar Bolsonaro nessa aliança para subjugar a Receita, a PF e procuradores é má-fé ou desinformação.
As evidências estão aí. Já me acostumei com ardorosos defensores de populistas se recusarem a encarar os fatos, refugiando-se numa narrativa paranoica para justificar o seu ídolo.
Bolsonaro cai nas pesquisas, muito pelas frases que diz, por não se conformar, às vezes, em apenas ter uma opinião sobre um tema: quer também desenterrar mortos para brigar com eles.
Quando os eleitores se derem conta de que sua luta contra a corrupção era apenas da boca pra fora, o prestígio vai desabar mais ainda. Talvez isso se torne nítido quando perceberem que investe contra Moro, que por sua vez se finge de morto. Moro é popular, conquistou admiração externa, quer eficácia no combate ao crime.
Quando ondas de desencanto batem sobre os grandes esquemas políticos, todos podem ser atingidos. Boas ou más intenções, planos de carreira, avanço no combate ao crime são variáveis que talvez não compensem o desgaste.
Na verdade, em termos internacionais o desgaste é mais acelerado ainda. Uma das últimas de Bolsonaro foi defender Augusto Pinochet, considerado um violento ditador por grande parte do mundo. Basta ler a imprensa chilena para ver como foi sentida a acusação de Bolsonaro contra o pai da alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet.
A repercussão das falas de Bolsonaro, desde aquele fatídico post sobre o golden shower, traz uma avalanche de comentários negativos. Às vezes, num deles aparece esta frase: deve ser difícil para os brasileiros. Tem sido. A frase pressupõe também que muitos discordam, e, felizmente, as pesquisas comprovam isso.
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