Salta aos olhos que Bolsonaro não
assimilou os conceitos e deveres da função pública
Em 2020, quer se reeleja ou não, Jair Bolsonaro
provavelmente terá ainda à sua frente um país consumido por várias devastações,
umas bem visíveis, outras quase invisíveis. Comecemos pelas devastações
visíveis.
Falar da Amazônia é chover no molhado. Pensemos só em
nossa incapacidade de efetivar as reformas sem as quais não retomaremos o
crescimento econômico em bases sustentáveis. Em nosso calamitoso sistema de
ensino, sobre o qual nenhuma proposta relevante de reforma veio a público
nestes quase dois anos de governo. No disparate de um país que não consegue
ajustar as contas do governo, mas insiste em se desenvolver com base no
investimento público, e num governo que mantém o ministro Paulo Guedes como
personagem figurativo. Num país corroído até a medula pela corrupção, que
alimentava a esperança de reformar essa área de forma drástica, mas, em vez
disso, assistiu à defenestração do ex-juiz Sergio Moro e a um tapete vermelho
estendido na rampa do Planalto para o retorno da “velha política”.
Por último, mas não menos importante, uma palavra sobre
nossa medíocre taxa de investimento, que nos mantém aprisionados na chamada
“armadilha do baixo crescimento”. Aprisionados até onde a vista alcança, uma
vez que uma renda anual per capita crescendo 2% ao ano não será dobrada em
menos de 30 anos – o que ainda seria um resultado medíocre. Em tal quadro,
nutrimos a ilusão de que dentro de mais alguns anos o nosso decantado “país do
futuro” será um pouco melhor ou pelo menos igual a esse de que hoje dispomos,
como se a possibilidade do retrocesso não existisse, a pior hipótese sendo a de
ficarmos parados no tempo, sem sair do lugar.
Dediquei o parágrafo acima a focos bem visíveis de
devastação, todos eles de conhecimento geral. Entre as devastações menos
visíveis, a primeira a mencionar é, sem dúvida, o abandono da reforma política.
Já nem falamos nela, como se o nosso sistema político fosse um primor de
funcionalidade, como se as instituições, nos três Poderes, estivessem
funcionando esplendidamente e como se a máquina do Estado estivesse pronta a
responder ao primeiro impulso favorável ao crescimento da economia. O que se
vê, infelizmente, é bem o contrário, e aqui vou me ater a um aspecto apenas da
estratégia política de Jair Bolsonaro.
Nunca em nossa História tivemos tantos militares
graduados no Executivo. Não estou sugerindo que isso seja ilegal, nem quero
recorrer ao termo “cooptação”, sabidamente pejorativo. Mas, inegavelmente, o
recrutamento para o Executivo de tantos oficiais militares não se harmoniza com
o artigo 142 da Constituição de 1988, que define as Forças Armadas como
“instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na
hierarquia e na disciplina”. Essa definição do status das Forças Armadas é o
núcleo conceitual que as diferencia de uma força suscetível de partidarização
ou de eventual devoção a um governo de índole caudilhesca. É óbvio que falo em
tese, sem me referir a nenhuma conduta específica das Forças Armadas no atual
governo. Contudo, no momento atual, expressar tal preocupação é normal e
cabível, tendo em vista o clima de desvairada radicalização que possibilitou a
ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência e, igualmente importante, as atitudes
por vezes desnorteadas que Sua Excelência assume.
Mesmo tendo passado 29 anos na Câmara dos Deputados e
obtido expressiva votação no pleito presidencial, salta aos olhos que Jair
Bolsonaro não assimilou na extensão devida os conceitos e deveres inerentes a
toda função pública. Bem ao contrário, ele parece desconhecer a noção de
“liturgia do cargo”; contraria (para não dizer sabota) de maneira frontal o
trabalho dos Estados e municípios no combate à pandemia de covid-19, fomentando
aglomerações e recusando-se a usar a máscara; procura influenciar a Polícia
Federal, desconhecendo, ao que parece, que também ela é uma instituição de
Estado; e muda de orientação política como quem troca de camisa, por exemplo,
deixando de lado a “nova” e retornando à “velha” política.
Ainda mais preocupante, a meu juízo, é o manifesto
desprezo do presidente da República pelo imperativo do comedimento na vida
pública. A pessoa investida numa magistratura do Estado tem de compreender que
não se pertence mais. O respeito devido aos cidadãos e ao país impõe-lhe a mais
estrita observação desse preceito que denominamos comedimento, moderação,
temperança, senso de proporção. Em seu ensaio Os Inimigos Íntimos da
Democracia, o filósofo francês Tzvetan Todorov vai direto ao ponto:
descomedir-se é o caminho mais rápido para reunir num único feixe os riscos objetivos
a que toda democracia vez por outra se torna vulnerável. “Na Grécia antiga”, o
filósofo prossegue, “os deuses puniam o orgulho dos homens que pretendessem
ascender ao lugar deles, como se fossem onipotentes; entre os cristãos, o ser
humano é sujeito desde o nascimento pelo pecado original, que limita
severamente suas aspirações.”
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das
Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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