sábado, 26 de setembro de 2020

Marcelo Trindade* - Liberalismo e ditaduras

- O Globo

Para um verdadeiro liberal, não há fins que justifiquem os meios

Quem faz vista grossa para o discurso de Bolsonaro, saudosista da ditadura, e ao mesmo tempo se diz liberal, deveria assistir a “Narciso sem espelho”, o documentário em que Caetano Veloso narra sua prisão arbitrária semanas após o AI-5, em 1968. O absurdo da situação e especialmente a leitura, por Caetano, de seu depoimento na prisão confirmam ser impossível conciliar liberalismo e arbitrariedade.

Em tempos obscuros como aqueles, as pessoas eram presas por supostos delitos de opinião. Não se sabia o que ocorria nas prisões, nem havia informações sobre os presos. Mesmo quem não fosse torturado era mantido sob a inimaginável pressão psicológica de não compreender por que era acusado, ou quanto tempo ficaria preso, muitas vezes em celas solitárias.

A olho nu, “Narciso sem espelho” revela delicadamente a essência de toda ditadura, que é sua crueldade. A prisão sem prévio processo. A detenção indeterminada e sem controle judicial. O sequestro da dignidade do preso. Nas entrelinhas, entretanto, está o mais terrível. A paulatina perda da liberdade de dizer o que se pensa. No caso, a criminalização da conduta, que não houve, de cantar o Hino Nacional na melodia da “Tropicália”.

No momento do filme que me pareceu mais enfático e pungente, Caetano declarou-se liberal. Dado o contexto, interpretei suas palavras como uma defesa intransigente da liberdade. Acontece que o filme foi rodado há dois anos, e há poucas semanas, no programa “Conversa com Bial”, Caetano contou que se tornara crítico do liberalismo. Mudara de ideia por causa de novas leituras, disse, não como reação à realidade. Hoje vê diferenças entre os extremos, de esquerda e direita.

Para um verdadeiro liberal, não há fins que justifiquem os meios, nem nuances na barbárie. O horror e a dor de quem foi perseguido e preso por suas opiniões são os mesmos, sob Stálin, Fidel ou nossa ditadura militar. A defesa da democracia deve ser intransigente. Assistir a “Narciso sem espelho” nos ajuda a não esquecer isso.

*Marcelo Trindade é advogado e professor da PUC-Rio

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