Para um verdadeiro liberal, não há fins que justifiquem os meios
Quem faz vista grossa
para o discurso de Bolsonaro, saudosista da ditadura, e ao mesmo tempo se diz
liberal, deveria assistir a “Narciso sem espelho”, o documentário em que
Caetano Veloso narra sua prisão arbitrária semanas após o AI-5, em 1968. O
absurdo da situação e especialmente a leitura, por Caetano, de seu depoimento
na prisão confirmam ser impossível conciliar liberalismo e arbitrariedade.
A olho nu, “Narciso sem
espelho” revela delicadamente a essência de toda ditadura, que é sua crueldade.
A prisão sem prévio processo. A detenção indeterminada e sem controle judicial.
O sequestro da dignidade do preso. Nas entrelinhas, entretanto, está o mais
terrível. A paulatina perda da liberdade de dizer o que se pensa. No caso, a
criminalização da conduta, que não houve, de cantar o Hino Nacional na melodia
da “Tropicália”.
No momento do filme que
me pareceu mais enfático e pungente, Caetano declarou-se liberal. Dado o contexto,
interpretei suas palavras como uma defesa intransigente da liberdade. Acontece
que o filme foi rodado há dois anos, e há poucas semanas, no programa “Conversa
com Bial”, Caetano contou que se tornara crítico do liberalismo. Mudara de
ideia por causa de novas leituras, disse, não como reação à realidade. Hoje vê
diferenças entre os extremos, de esquerda e direita.
Para um verdadeiro
liberal, não há fins que justifiquem os meios, nem nuances na barbárie. O
horror e a dor de quem foi perseguido e preso por suas opiniões são os mesmos,
sob Stálin, Fidel ou nossa ditadura militar. A defesa da democracia deve ser
intransigente. Assistir a “Narciso sem espelho” nos ajuda a não esquecer isso.
*Marcelo Trindade é advogado e professor da PUC-Rio
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