Falta ainda uma concertação política para garantir as regras do jogo
A grande promessa do regime democrático é viabilizar um “governo do povo, pelo povo e para o povo”, na célebre frase de Abraham Lincoln. Através de eleições e garantias para que os cidadãos possam exercer de maneira autônoma suas escolhas, criou-se um forte incentivo para que líderes e instituições democráticas transformem as demandas da sociedade em leis e políticas de governo. O exercício da soberania popular deve, no entanto, ser mediado pelo império da lei, como já alertava Rousseau, para que não corra o risco de se transformar em uma tirania do maior número ou num regime de arbítrio.
Quando as lideranças, o processo democrático e as
instituições de aplicação da lei não se demonstram capazes de cumprir muitas
das promessas da democracia, perdendo credibilidade e legitimidade, surge uma
oportunidade quase irreversível para que líderes populistas se apresentem como
representantes exclusivos de uma concepção idealizada de “povo” e interpretes
autênticos do uma visão distorcida de “bem comum”.
Populistas são essencialmente contrários ao pluralismo
democrático. Todos que deles discordam são traidores do povo, assim
como as instituições que lhes ousam colocar limites merecem o tratamento de
trincheiras inimigas. Uma vez no governo, populistas fomentam a polarização política e provocam crises, para angariar
lealdades, além de hostilizar instituições de controle e aplicação
da lei, a fim de capturá-las.
Como ressalta Jan-Werner Muller, uma vez estabelecida a
lógica “amigo-inimigo”, nenhuma crítica, erro, quebra de decoro ou legalidade
por parte do líder populista (ou seus acólitos) parece afetar a lealdade e
confiança de seus seguidores.
Não importa que centenas de milhares de mães e
avós morram em decorrência do negacionismo pandêmico;
que as principais reservas ambientais do país estejam ardendo
por omissão do governo; que povos indígenas estejam correndo risco de extinção;
que privilégios estamentais não sejam extintos,
como prometido. Tudo de ruim é responsabilidade dos que conspiram contra o
povo, não da inépcia ou desvios populistas. Essa foi sua mensagem
entregue na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas.
Atribuir a caboclos e indígenas a culpa pelas
queimadas, ou transferir ao Judiciário a responsabilidade pelo que se deixou de
fazer na pandemia deveria ser considerado pura covardia e pusilanimidade. Mas
não. A mentira e a covardia parecem ter um efeito redentor, que infla sua popularidade.
A reação à tentativa de subversão da democracia pelo populismo autocrático tem vindo de múltiplos e inesperados setores. Instituições fragilizadas pela crise política que teve início em 2013, como o STF, parecem juntar cacos para estabelecer alguns limites à escalada autocrática. Mesmo na barafunda, nosso pluralismo partidário e o federalismo têm tornado o caminho do populismo mais acidentado. Cláusulas pétreas refreiam uma rápida erosão constitucional. Setores de vanguarda do agronegócio se contrapõem à piromania governamental.
Empresas como o Magalu propõem,
corajosamente, medidas práticas para enfrentar o racismo estrutural e
ampliar o pluralismo; outras, como a Volkswagen, reconhecem seus erros durante a ditadura.
Líderes e organizações da sociedade civil e da imprensa colocam suas trajetórias
e vidas em risco pela defesa da democracia e dos direitos humanos.
Esses esforços serão insuficientes, no entanto, se
forças democráticas não forem capazes de construir uma ampla e inclusiva
concertação política, voltada a garantir as regras do jogo e as promessas da
democracia. Em momento de crise, esse é o maior antídoto contra populismo
autocrático. É assim que as democracias sobrevivem.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário