sábado, 26 de setembro de 2020

João Gabriel de Lima - O que as cigarras fizeram no verão passado

- O Estado de S.Paulo

Planalto e Esplanada têm muita vocação para o canto e pouca para a entrega

A fala do presidente Jair Bolsonaro na ONU, para além das distorções – expostas em manchete, reportagem e editorial do Estadão –, mostra um padrão de conduta do governo federal. Planalto e Esplanada são comparáveis às cigarras da fábula de La Fontaine: muita vocação para o canto, pouca para a entrega. O caso da Amazônia é extremo: o governo canta tolerância zero contra o crime ambiental ao mesmo tempo que relaxa os controles que impedem o desmatamento. Tal estilo se repete em várias áreas.

O Executivo cantou que transformaria o auxílio emergencial num dos maiores programas sociais do Ocidente, o Renda Brasil. Cantou que melhoraria os serviços públicos com uma reforma administrativa. Tudo seria feito segundo uma tal “nova política” – um estilo de governar nunca antes visto neste país. Em todos os casos, as entregas foram abaixo do esperado.

Enquanto as cigarras entoavam suas árias, as formigas trabalhavam. Várias delas estão no Congresso Nacional e foram as responsáveis por colocar de pé o auxílio emergencial, em parceria com organizações da sociedade civil (esta coluna tratou do tema semanas atrás). No fim do ano passado, quando ficou claro que o Executivo não apresentaria uma reforma administrativa abrangente, surgiu uma frente parlamentar para tratar do caso. A proposta do governo saiu no início deste mês – tímida, feita para não comprar briga, como costuma ocorrer no mundo das cigarras. Novamente as formigas terão de arregaçar as mangas.

Coordenada pelo deputado Tiago Mitraud (Novo-MG), personagem do minipodcast da semana, a frente parlamentar da reforma administrativa tem várias características da verdadeira “nova política”. É formada por deputados jovens, espelho da renovação do Congresso nas últimas eleições, e tem caráter plural – o diálogo é a alma da boa política, seja ela “velha” ou “nova”. A frente tem gente de esquerda (os socialistas Alessandro Molon e Felipe Rigoni), de centro (Marcelo Calero e Alex Manente, ambos do Cidadania) e de direita (Vinícius Poit e o próprio Mitraud, do Partido Novo). 

Não é garantia de sucesso, mas a frente está analisando casos internacionais. Um exemplo são os gastos com o Poder Judiciário. No Brasil eles estão entre os maiores do mundo – da ordem de 1,3% do PIB, ante 0,32% na Alemanha, de acordo com números coligidos pela frente. A proposta do Executivo não mexeu com o Judiciário. A desculpa – colocaria o governo sob risco de impeachment – tem base jurídica questionável, como mostrou reportagem do Estadão. Coisa de cigarras. 

Cantar em tom altissonante, enquanto outros trabalham em silêncio, pode ter suas vantagens. O auxílio emergencial foi criado no Congresso, mas o governo federal o apresentou como se fosse coisa sua. A “fake news” colou. Pode, no entanto, ser também arriscado. Como lembrou o ex-ministro e analista político Thomas Traumann, quando um governo não entrega é como se cometesse um pênalti. A oposição pode ir para a marca da cal e converter.

O risco existe no caso do Renda Brasil. O governo não conseguiu viabilizar o programa social chave para uma tentativa de reeleição. Se a oposição trabalhar direito, pode balançar a rede de cavadinha. Quando a formiga perguntou à cigarra o que ela fizera no verão passado, a resposta foi, na tradução do poeta português Bocage: “Eu cantava noite e dia, toda a hora”. A formiga retrucou: “Cantavas? Pois dança agora”.

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