Estrutura
gramatical do QAnon recupera e atualiza a narrativa dos Protocolos dos Sábios
do Sião
Na
sua reta final, a campanha de Donald Trump à reeleição entrelaça-se ao culto
online QAnon. O fenômeno inscreve-se numa longa história e descortina
as tendências evolutivas do discurso da extrema direta, nos EUA e mundo afora.
O
QAnon nasceu como narrativa conspiratória singular. Segundo ela, o Partido
Democrata americano é o núcleo de um complô de líderes pedófilos que organiza o
sequestro de crianças para escravizá-las a redes de exploração sexual. Sob o
comando de figuras como Joe Biden, Hillary
Clinton e Barack Obama,
operam Angela Merkel, Emmanuel Macron, Xi Jinping e outros “globalistas”
engajados no negócio diabólico da pedofilia. Nessa moldura, Trump ocuparia o
papel de salvador providencial das famílias, o derradeiro escudo protetor da
cristandade ameaçada.
O
mito da conspiração mundial sempre andou junto com a extrema direita. A
estrutura gramatical do QAnon recupera e atualiza a narrativa dos Protocolos
dos Sábios do Sião, fabricada pela polícia secreta da Rússia czarista para
impulsionar o antissemitismo. Os Protocolos contam a história de um complô
multissecular dos judeus destinado a assumir o controle dos bancos, das escolas
e dos veículos de comunicação, o que propiciaria a conquista dos poderes
estatais. A lenda, inventada em 1903, fez seu caminho até o movimento nazista
e, mais tarde, foi adotada pelos negacionistas
do Holocausto.
Nos
Protocolos, os judeus encarnam o cosmopolitismo, o liberalismo, o agnosticismo
e a depravação. O QAnon simplesmente substitui os judeus pelos “globalistas”.
Os judeus dos Protocolos imolariam crianças para extrair o sangue usado no
cozimento do matzá da Páscoa; os “globalistas” sacrificariam crianças puras nas
engrenagens da luxúria.
A
novidade está na plasticidade do QAnon —isto é, na sua natureza agregadora. Ao
longo de poucos anos, o mito original foi incorporando outras lendas difundidas
no ciberespaço. Obama não nasceu nos EUA e é um muçulmano disfarçado como
cristão. Osama
Bin Laden não morreu, mas foi escondido pelo governo americano. A Terra
esférica é uma
mentira carimbada pela Nasa. O coronavírus foi produzido num
laboratório chinês e exportado ao Ocidente com a cumplicidade dos
“globalistas”, que querem destruir as economias e submeter as nações a
perversas instituições multilaterais. A “vacina chinesa” é um vetor de controle
biológico dos indivíduos.
Acostumados
a um universo extremo de fantasias, os seguidores do QAnon tendem a assimilar
as sub-teorias conspirativas adventícias. Já os crentes dessas sub-teorias nem
sempre compram o complô dos pedófilos, mas não se importam em consumir
seletivamente as teses delirantes que circulam nas mesmas praças discursivas.
A
lenda mais recente está adaptada à hipótese realista do fracasso de Trump na
disputa pela Casa Branca —e é proclamada pelo próprio presidente americano. O
resultado adverso decorreria de vasta fraude eleitoral e anunciaria uma ofensiva
avassaladora do “Estado profundo”, por meio de uma “revolução colorida” que
confiscaria as armas e as liberdades dos cidadãos.
Como
qualquer discurso conspiratório que se preze, o QAnon triunfa nos dois
cenários. Se Trump perder, a profecia cataclísmica realizou-se, impondo uma
resistência ilimitada contra o governo dos pedófilos. Se, no fim das contas,
Trump vencer, a exposição do maligno complô evitou o pior, provando a
necessidade de uma guerra inclemente diante do ardiloso inimigo.
Há
outra distinção relevante. No tempo dos Protocolos, a narrativa da conspiração
movia-se exclusivamente de cima para baixo, ou seja, das lideranças políticas
rumo ao grande público. Hoje, na era das redes sociais, ela transita nas duas
direções, que se retroalimentam. Engana-se quem pensa que a “guerra
da vacina” é, apenas, uma expressão da rivalidade eleitoral de Jair Bolsonaro
com João Doria.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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