Difícil
voltar ao que havia antes. Mas não sabemos bem o que virá nem o que queremos
A
notícia de que uma segunda onda de disseminação do coronavírus atingiu diversos
países europeus dramatizou a questão que nos perturba desde o início do ano:
que futuro teremos? Em que medida ele será afetado pelas medidas que
acompanharam a marcha da covid-19 pelo mundo? Quando virão as vacinas e que
efeitos terão?
No
Brasil, em particular, tudo ganha maior proporção, dado o caráter atrabiliário
e anticientífico do presidente da República. Seus esgares ideológicos sugerem
uma preferência explícita pela morte e pelo descaso, menosprezam vacinas e põem
planos eleitorais à frente de providências médicas e sanitárias. Colidem com o
bom senso e a responsabilidade. Embaçam ainda mais o futuro.
Não
restam dúvidas de que a vida já sofre mudanças importantes. Estamos sendo
obrigados a alterar hábitos e comportamentos às pressas, sem o devido
processamento mental, prático e organizacional. Em dez meses vivemos como se
houvessem transcorrido vários anos. Pulamos do mundo físico, material,
analógico para o mundo digital. A casa passou a ser refúgio valorizado e os
filhos, acompanhados mais de perto. O delivery aumentou e novas
atividades produtivas brotaram. A mal chamada “uberização” invadiu setores bem
estruturados.
Ingressamos
com vigor no teletrabalho. A flexibilidade de horários articula-se com maiores
doses de informalidade. Novos padrões infiltraram-se inapelavelmente na vida
cotidiana, com vantagens e desvantagens: menos movimentação e deslocamentos,
mas mais percepção de que se trabalha 24 horas por dia, de que ficamos mais
dependentes de celulares e computadores, mais estressados e angustiados. A
torrente de informações que desaba sobre nós provoca pasmo e confusão. A
informalização crescente desprotege, causa insegurança e medo.
Tudo,
porém, é seletivo e tem um claro corte de classe: as maiorias sofrem para se
adaptar, ficam desempregadas com facilidade e sentem na pele a corrosão da
renda. Cada passo no processo de digitalização produz uma modificação no plano
do trabalho. Há mais produtividade e a mão de obra passa a ser substituída com
rapidez. Máquinas de inteligência artificial deslocam os humanos, competem com
eles, terminam por vencê-los. A obsolescência surge em cada curva da estrada. A
exigência de qualificação torna-se a porta de entrada do mundo do emprego, que,
no Brasil, paga alto preço pela baixa qualidade do sistema educacional. A nova
economia pede a incorporação de recursos técnicos e intelectuais de novo tipo,
cria exigências atitudinais e de formação continuada. A maioria da população
está longe disso. Tudo é arrastado pela voracidade do mercado. A
“desregulamentação” é do tipo arrasa-quarteirão: desmonta o que existia e de
algum modo protegia.
Difícil
imaginar que possamos voltar ao que havia antes. Estamos amarrados a um
presente que se modifica incessantemente sem que consigamos atravessar a névoa
que embaça o futuro.
Não
se trata de uma “nova normalidade”. Mudanças socioculturais transcorrem quase
sempre em silêncio, de modo molecular, e nos espasmos de seus fluxos vão se
impondo aos indivíduos, convencendo-os de que é preciso adotar novos hábitos e
valores. Mesmo quando há uma metamorfose social não há modificações repentinas.
Não serão os condicionantes da covid, nem o modo como a pandemia está sendo
administrada, que farão a vida ser virada de ponta-cabeça num átimo. Os efeitos
dos vigorosos processos em curso amadurecerão aos poucos, em decantação. Com
mais sofrimento que prazer.
Porque
a política está congelada no tempo. Os partidos continuam aprisionados à
mesmice. No Brasil, são desafiados pelos movimentos de renovação política, que
fazem intenso trabalho pedagógico. Há protestos variados pelo mundo, mais lutas
contra o racismo, a discriminação, a violência policial. A agenda eleitoral
permanece ativa, a defesa da democracia agrega vozes, formando uma retórica de
indignação que poucos resultados produz. Os governos continuam inoperantes,
líderes “populistas” seguem se multiplicando, sem que a política consiga
confrontá-los. A situação é terrível para os partidos mais à esquerda, que
sofrem por estar numa posição antissistêmica sem terem uma ideia clara de
sistema alternativo e sem terem, também, sustentação social consistente, o que
decorre da desconstrução a que está submetida a estrutura de classes.
Ainda
não se pôs em movimento uma política dedicada a pensar o futuro. Sem ela
ficamos às cegas, agarrados às nossas fantasias, aos nossos fantasmas, às
narrativas impulsionadas pelas redes.
Não
sabemos bem o que virá pela frente, nem o que queremos. Talvez consigamos
deslindar o que não desejamos: o autoritarismo, as discriminações, o racismo, a
violência, a insegurança. Mas a forma do futuro permanece imprecisa, uma
esfinge perturbadora. E assim permanecerá enquanto não surgir uma proposição
política democrática que organize o presente e elabore uma carta de navegação
que nos una e nos leve ao futuro.
*Professor titular de teoria política da UNESP
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