terça-feira, 6 de outubro de 2020

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Keynes e Francisco, Fratelli tutti

- Valor Econômico

A cura dos desatinos do capitalismo individualista deve ser buscada, em parte, pelo controle da moeda e do crédito

 “Devemos abandonar os falsos princípios morais que nos conduziram nos últimos dois séculos. Eles colocaram as características humanas mais desagradáveis na posição das mais elevadas virtudes. Não há nenhum país, nenhum povo que possa vislumbrar a era do tempo livre e da abundância sem um calafrio [...]. Pois fomos educados para o esforço aquisitivo e não para fruir [...]. Se avaliarmos o comportamento e as realizações das classes abastadas de hoje, as perspectivas são deprimentes [...]. Os que dispõem de rendimentos diferenciados, mas não têm deveres ou laços, falharam, em sua maioria, de forma desastrosa no encaminhamento dos problemas que lhes foram apresentados.” (John Maynard Keynes, Perspectivas Econômicas dos Nossos Netos - 1930).

Os jesuítas da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), me adiantaram gentilmente a Encíclica Fratelli tutti na sexta-feira, 2 de outubro. Peço licença para oferecer aos leitores do Valor uma citação do documento do Pontífice, divulgado no domingo, 4 de outubro.

 “Se alguém acredita que se trata apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, que a única mensagem é que devemos melhorar os sistemas e as regras já existentes, está negando a realidade... Observa-se a penetração cultural de uma espécie de “desconstrucionismo”, onde a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. Fica em pé unicamente a necessidade de consumir sem limites e a exacerbação de muitas formas de individualismo sem conteúdo”.

Keynes, assim como Francisco, professava a crença que a sociedade e o indivíduo eram produtos da tradição e da história. Ele cultivava os valores de uma moral comunitária, visceralmente antiutilitarista e antiindividualista. Essa convicção era acompanhada da admiração pelas virtudes criativas da modernidade capitalista nascida sob o consigna do avanço das liberdades e da autonomia do indivíduo.

No seu célebre artigo “O fim do laissez-faire”, Keynes vergastou a ideia de que a busca do interesse privado levaria necessariamente ao bem-estar coletivo. “Não é uma dedução correta dos princípios da teoria econômica afirmar que o egoísmo esclarecido leva sempre ao interesse público. Nem é verdade que o autointeresse seja, em geral, esclarecido”.

Ouço Francisco: “A mera soma de interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para a humanidade. Sequer pode nos preservar de tantos males que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de ser vencido. Engana. Nos faz crer que tudo consiste em dar rédea solta às próprias ambições, como se a acumulação de ambições e seguranças individuais pudessem garantir a construção do bem comum”.

Keynes entendia que os efeitos negativos do darwinismo social devem ser neutralizados pela ação jurídica e política do Estado e, sobretudo, pela atuação de “corpos coletivos intermediários”, tais como um Banco Central dedicado à gestão consciente da moeda e do crédito e empresas semipúblicas mais voltadas para o interesse coletivo que para a consecução do lucro.

A cura dos desatinos do capitalismo individualista deve “ser buscada, em parte, pelo controle da moeda e do crédito por uma instituição central e, em parte, por um acompanhamento da situação dos negócios, subsidiados por abundante produção de dados e informações”. Maynard insistia na “direção inteligente pela sociedade dos mecanismos profundos que movem os negócios privados”, particularmente as decisões sobre a posse da riqueza marcadas pelo conflito entre o investimento criador de riqueza nova - leiam-se emprego, rendimentos e lucros para trabalhadores e empresários - e a acumulação de valores fictícios, estéreis para a comunidade.

No último capítulo de sua obra maior, Notas Finais sobre a Filosofia Social a que pode levar a Teoria Geral, Keynes propõe um conjunto de políticas apoiadas nas concepções já sugeridas em 1933, no “The Means to Prosperity”: “o problema econômico é uma questão de economia política, isto é, da combinação entre teoria econômica e a arte da gestão estatal”.

O primeiro ponto desse arranjo de política econômica é a “socialização do investimento”, entendida como a coordenação pelo Estado das relações entre o investimento público e privado. O “orçamento de capital” do governo deve ser administrado de modo a minorar as incertezas que contaminam o investimento privado.

O segundo pilar da proposta keynesiana cuida da eutanásia do rentista. A política bancária e de crédito deve ser administrada com o propósito de neutralizar “o poder de opressão cumulativo do capitalista para explorar o valor de escassez do capital [...] enquanto sejam intrínsecas as razões para a escassez da terra, isso não é verdade para a escassez de capital”.

O terceiro ponto reclama um sistema fiscal que mantenha permanentemente a capacidade de redistribuir renda dos mais abonados para as classes menos favorecidas, com o objetivo de manter o consumo crescendo à mesma velocidade da expansão da renda.

O quarto ponto: Keynes clamava, já na Teoria Geral, por uma distribuição mais equitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários e superavitários, como forma de evitar os desatinos competitivos de “empobrecer o vizinho”.

Isso significava facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países superavitários. O propósito era evitar os “ajustamentos deflacionários” e manter as economias na trajetória do pleno emprego.

Para Keynes, suas propostas poderiam se interpretadas “por um publicista do século XIX ou um financista norte-americano contemporâneo [como] uma abominável limitação ao individualismo; a mim parece o contrário: o único meio praticável de evitar a destruição total das instituições econômicas atuais e com a condição de um proveitoso exercício da iniciativa individual”.

Na Encíclica, Francisco reivindica uma política econômica ativa “... que promova a diversidade produtiva e a criatividade empresarial” para que seja possível aumentar os empregos em vez de reduzi-los. A especulação financeira com lucro fácil como um fim fundamental continua a causar estragos. Além disso, sem formas internas de solidariedade e confiança mútua, o mercado não pode cumprir plenamente sua própria função econômica. Hoje, precisamente essa confiança falhou”.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

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