terça-feira, 6 de outubro de 2020

Joel Pinheiro da Fonseca* - Do olavismo ao centrão

- Folha de S. Paulo

Presidente abriu mão da agenda anticorrupção e da fantasia antissistema; em troca, ganhou sobrevivência política

Quem vê Bolsonaro trocando abraços em jantar com Toffoli e Alcolumbre até se esquece que em maio se discutia seriamente a possibilidade de impeachment. Depois de toda aquela turbulência, o governo se
assentou e agora as águas da política estão na mais perfeita calmaria.

Bolsonaro abriu mão da agenda anticorrupção e da fantasia “antissistema”; em troca, ganhou sobrevivência política. Alguém ainda acredita que ele defende a Lava Jato? Ele quer antes matá-la, e por isso nomeia um garantista para o STF. A paz de sua própria família depende do fortalecimento de toda tecnicalidade jurídica que possa proteger criminosos de colarinho branco (para pessoas pobres, vale lembrar, a mesma lei continua decretando prisão, antes da primeira instância, para culpados e inocentes).

Há todo um espectro de eleitores “antissistema”: desde aqueles que defendem apenas a bandeira da Lava Jato, do combate à corrupção, passando pelos que sonham com o fim do fisiologismo político de maneira geral, até aqueles que sonham com o fim da democracia, fechamento do Congresso e do STF. Grande parte deles aderiu a Bolsonaro em algum momento. Hoje, todos estão decepcionados.

Qual é o motivo da surpresa? Bolsonaro esteve no Congresso Nacional por 27 anos, 11 dos quais como membro do PP. Nessas décadas, pouco fez como parlamentar, além da defesa do corporativismo militar e das polícias. Ao abraçar o centrão, apenas joga fora a fantasia de paladino da justiça que vestiu durante um ciclo eleitoral. Sua grande virtude? Não ter participado de grandes escândalos, apenas de pequenos).

Ao mesmo tempo, vem se livrando da ala ideológica do governo e das milícias digitais de fake news que lhe davam suporte.

Tampouco vejo motivo para tristeza. Ao menos no que diz respeito às crenças e valores (e não necessariamente à sua capacidade de colocá-los em prática), a ala ideológica é o que há de pior no governo.

Alimentam sonhos totalitários de uma teocracia cristã a serviço dos EUA, na qual a educação e a cultura nada mais seriam do que ferramentas para sedimentar a estrutura desse poder nas mentes e corações dos homens. Milícias de cidadãos armados a serviço direto do presidente garantiriam a ordem nas ruas.

Sara Winter, que hoje grava vídeos se dizendo traída por Bolsonaro, é só o expoente mais caricato de toda uma fauna de bajuladores profissionais, difusores de calúnias e fanatizadores da opinião pública. Por terem entregue toda e qualquer dignidade pessoal em nome do projeto político bolsonarista, acreditaram que receberiam de volta alguma proteção. Longe disso. Hoje, alguns são investigados, outros estão presos; todos desacreditados. Bolsonaro percebeu que proximidade com esses aliados é fonte de problemas. Não moverá uma palha para salvá-los das consequências de suas campanhas de difamação e de ameaças à democracia. O apoio popular perdido nas redes é substituído com folga pela popularidade inédita entre eleitores de baixa renda.

É ruim ver mais um governo se atirando nos braços do centrão? Sem dúvida. Mas é menos ruim do que se apostasse para valer nos alucinados de extrema direita que agora choramingam impotentes. Ainda aguardamos uma alternativa crível aos vícios de nossa velha política, e que não seja ela própria ainda pior do que os males que combate. Essa superação não se dará com bravatas gritadas em vídeos de YouTube, nem com sonhos autoritários, mas pela força de uma liderança com agenda propositiva que saiba elencar prioridades e conversar com bons quadros de diversos partidos. Às vezes a utopia é nossa última esperança.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.

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