‘A tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não’
Quando escreveu o Samba da Bênção, há mais de meio século, Vinicius de Moraes, o branco mais preto do Brasil, não imaginaria um mundo tão cheio de ódio e divisão como o atual. Menos ainda uma situação como a que vivemos hoje, em que o isolamento e distanciamento físico se impõem, empurrando a alegria das noites boêmias para o campo de uma memória quase distante.
Mas
de tudo, a maior das distâncias entre o Rio de
Janeiro de então e o atual que agoniza, afundado em um mar de
corrupção e violência, é a da desigualdade social. Mas o Brasil é o Rio de
Janeiro. Entre os altos e baixos nos índices de concentração de renda e de
redução da pobreza nesses tantos anos, voltamos a piorar e pioramos muito.
Exclusão, marginalização e ausência de oportunidades para tantos são as
características do Brasil de hoje. Temperadas por intolerância, polarização e a
desinformação propagada por fake news.
É
sobre tudo isso, ou melhor, sobre o combate a tudo isso que versa a nova
encíclica papal. Não por coincidência, a 3.ª encíclica do papa Francisco foi
tornada pública no dia em que se celebra São Francisco de Assis, o mais
fraterno dos santos cristãos. Fratelli Tutti, a encíclica social recheada
de conceitos econômicos, busca mobilizar não só os católicos, mas todas as
pessoas do bem, em torno do que há de melhor nas nossas capacidades humanas: o
encontro, a convergência, a empatia, a união, a compreensão, a inclusão e a
fraternidade. Num mundo tão marcado pelo desencontro, nela o Samba da
Bênção ressurge, lembrando-nos que, apesar disso, a vida é a arte do
encontro – entre pessoas, entre povos, entre nações. E é desse encontro que um
mundo melhor surge.
Embora
cometa o erro de usar o termo neoliberalismo de forma excessivamente dogmática,
o capítulo V da encíclica destaca a importância de termos políticas melhores.
Políticas melhores são aquelas que permitem a geração de emprego, uma melhor
distribuição de renda, a inclusão das minorias e o fim das injustiças.
Contrapõem-se às ações populistas que visam à perpetuação de grupos no poder e
ao interesse individual, lideranças transformadoras que pensam no bem comum e
no desenvolvimento econômico e social. Aqui, segue o texto, a grande questão é
o trabalho. Ser popular de verdade é dar condições para que todos possam se
desenvolver e viver das suas capacidades, iniciativas e forças. Sem negar a
importância das redes de proteção social nas sociedades genuinamente fraternas,
seu caráter provisório e a necessidade de focalização são um destaque. Da mesma
forma, o texto chama a atenção para a degeneração do termo “popular”, por
líderes populistas em busca do interesse imediato. Tendo como única finalidade
a garantia de votos, responde-se às exigências populares, sem que se avance na
árdua tarefa de proporcionar às pessoas as oportunidades e os recursos para o
seu desenvolvimento, de forma perene e sustentável.
Não, Fratelli
Tutti não foi escrita para o Brasil em resposta à falta de apetite que
vemos no governo atual em avançar numa agenda de reformas estruturais que nos
devolva a capacidade de crescer e de gerar emprego e renda para uma população
que empobrece a cada dia. Não, ela não foi escrita para colocar luz na
incapacidade do governo e dos agentes públicos de atacar os privilégios e
enfrentar grupos de interesse que jogam o País num impasse diário. Impasse que
gera como resultado uma opção distributiva sempre cruel. Ela também não foi
escrita para mostrar que a principal motivação para a ampliação do programa
universal de renda básica, sem desenho e sem fonte clara de financiamento, é a
eleição de 2022 e à custa de um país ainda mais pobre e capturado pelo
clientelismo. Ela tampouco visa ao Brasil quando cita a importância da abertura
entre os países, do acolhimento dos povos, da importância da sustentabilidade
ambiental. O mesmo vale para o horror crescente que são a intolerância, o
fomento ao ódio ou à agressividade que tomaram conta do debate. Não, ela não
foi escrita para o Brasil, mas foi.
Fratelli
Tutti clama por fraternidade e método. Fraternidade com método significa
estabelecer relações pessoais, institucionais e de política pública que tenham
por objetivo o bem comum e a proteção da democracia. Incluir, tolerar, reduzir
as diferenças sociais, gerar oportunidades para todos e trabalhar por um mundo
melhor é ser fraterno. No Brasil, infelizmente nunca estivemos tão distantes
disso. Hoje somos mais intolerantes, menos fraternos e também mais desiguais. E
por isso mesmo, mais tristes. Que o Samba da Bênção, que é só
fraternidade, continue nos lembrando que “a tristeza tem sempre uma esperança
de um dia não ser mais triste não”.
*Economista e sócia da Consultoria Oliver Wyman
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