O
sangue de João Alberto ficou no chão do supermercado e ele sem vida já não
gritava. Essa foi a cena final. Aos 40 anos, Beto foi morto por asfixia, depois
de espancamento. Como na escravidão. Foi em Porto Alegre, horas antes do dia da
Consciência Negra. O racismo é o nosso pior defeito. Quando a gente pensa que o
país está evoluindo, vem um soco no estômago. O Carrefour repudiou o ato, mas
os funcionários da empresa terceirizada se sentiram autorizados a espancar uma
pessoa até a morte, em cena pública.
Há
fatos a comemorar nos últimos tempos. Mulheres negras foram eleitas para
diversas câmaras de vereadores. Empresários e executivos negros, novas formas
de contratação, começam a mudar o mundo corporativo. A propaganda, a moda
passaram a ter vergonha de ter apenas modelos brancos. Há duas histórias para
contar no Brasil, a dos crimes do racismo estrutural, a da resistência
antirracista. Dias atrás, nas ruas de Curitiba, uma jovem candidata a vereadora
era saudada com gritos:
—
Carol, vamos fazer história!
Carol
Dartora (PT) começou sua campanha para a Câmara Municipal com o lema: “Curitiba
nunca teve uma vereadora negra, não reproduza essa história.” Por isso alguns
curitibanos que cruzavam com a candidata nos dias finais da campanha davam esse
grito de esperança. Ela foi eleita. Conversei na última quinta-feira com uma
radiante Carol e pedi que ela me contasse sua história. No relato, há as
agressões, a consciência, a militância. A vereadora assumirá com a pauta
extensa de mudanças com as quais sonha, que vão da passagem dos ônibus aos
crimes contra os negros:
—
Temos que discutir a passagem de ônibus, muito cara para a comunidade negra que
foi empurrada para a periferia e que tem que pagar duas a três passagens. Temos
que olhar para o extermínio da juventude negra. Trago comigo o feminismo e o
feminismo negro. Como historiadora, quero discutir o passado. Como professora,
a educação pública de qualidade.
Assim,
cheia de sonhos, Carol se prepara para assumir. Horas depois, em Porto Alegre,
João Alberto seria agredido até a morte. O racismo usa todas as formas, até o
assassinato, para dizer ao negro que ele não pertence ao lugar onde merece
estar. Seja num supermercado, seja numa escola.
Carol
estudou em boas escolas públicas. O pai era servidor do Tribunal de Justiça, a
mãe, professora:
—
Eu sou preta, preta retinta. E pobre. Mas o Brasil é tão desigual que o pouco
que tínhamos acabou me levando a estar sempre onde havia poucos negros. Estudei
em boas escolas públicas, mesmo sendo públicas, havia principalmente brancos.
Estudiosa,
ela tirava notas boas. Certa vez, uma professora mostrou o quanto isso a
incomodava.
—
Ela me disse: ‘você tirou nove?’ E me separou de minhas amigas, mandando eu
sentar na última carteira.
Um
dia, o pai comprou para ela uma bicicleta nova e ela foi para a escola com a
sua bicicleta:
—
Fui hostilizada a tarde inteira, pelos meninos e meninas. Era como se eu,
preta, não pudesse ter uma bicicleta novinha. Quando eu estava saindo para
voltar para casa, umas crianças me perseguiram, me xingando e chutando a
bicicleta. Eu cheguei em casa transtornada, chorando muito. Minha mãe foi à
escola, um professor disse que viu. Viu e nada fez.
Ela
se formou em História disposta a entender o passado, foi dar aula numa escola
pública central e renomada. Reviu, numa aluna negra, a mesma história de
injúria racial que viveu. Resolveu pesquisar o cotidiano dos alunos. Seu
mestrado foi sobre as adolescentes negras da escola pública em Curitiba:
—Tudo
foi se juntando. Curitiba é uma cidade que se proclama como europeia, que dá
aos negros a sensação de não pertencimento. A vivência das mulheres e das
mulheres negras, a luta pela educação de qualidade. Eu fui consolidando o
entendimento. O muro é muito alto — nunca houve uma vereadora negra em Curitiba
— mas decidi escalar. Era sonho e dava medo.
Ela
realizou. Há outras vitoriosas. Ana Lúcia Martins (PT) foi eleita a primeira
vereadora negra de Joinville. Foi ameaçada de morte. O Brasil muda devagar.
Antes de terminar, Carol quis dar um último recado:
—
As pessoas me perguntam se eu acho possível superar o racismo. Eu digo que
obviamente sim, porque se ele foi criado, foi inventado, foi construído, pode
ser desconstruído.
Que o sonho de Carol chegue logo. Já nos atrasamos muito.
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