sábado, 21 de novembro de 2020

Míriam Leitão - O futuro chega muito devagar

- O Globo

O sangue de João Alberto ficou no chão do supermercado e ele sem vida já não gritava. Essa foi a cena final. Aos 40 anos, Beto foi morto por asfixia, depois de espancamento. Como na escravidão. Foi em Porto Alegre, horas antes do dia da Consciência Negra. O racismo é o nosso pior defeito. Quando a gente pensa que o país está evoluindo, vem um soco no estômago. O Carrefour repudiou o ato, mas os funcionários da empresa terceirizada se sentiram autorizados a espancar uma pessoa até a morte, em cena pública.

Há fatos a comemorar nos últimos tempos. Mulheres negras foram eleitas para diversas câmaras de vereadores. Empresários e executivos negros, novas formas de contratação, começam a mudar o mundo corporativo. A propaganda, a moda passaram a ter vergonha de ter apenas modelos brancos. Há duas histórias para contar no Brasil, a dos crimes do racismo estrutural, a da resistência antirracista. Dias atrás, nas ruas de Curitiba, uma jovem candidata a vereadora era saudada com gritos:

— Carol, vamos fazer história!

Carol Dartora (PT) começou sua campanha para a Câmara Municipal com o lema: “Curitiba nunca teve uma vereadora negra, não reproduza essa história.” Por isso alguns curitibanos que cruzavam com a candidata nos dias finais da campanha davam esse grito de esperança. Ela foi eleita. Conversei na última quinta-feira com uma radiante Carol e pedi que ela me contasse sua história. No relato, há as agressões, a consciência, a militância. A vereadora assumirá com a pauta extensa de mudanças com as quais sonha, que vão da passagem dos ônibus aos crimes contra os negros:

— Temos que discutir a passagem de ônibus, muito cara para a comunidade negra que foi empurrada para a periferia e que tem que pagar duas a três passagens. Temos que olhar para o extermínio da juventude negra. Trago comigo o feminismo e o feminismo negro. Como historiadora, quero discutir o passado. Como professora, a educação pública de qualidade.

Assim, cheia de sonhos, Carol se prepara para assumir. Horas depois, em Porto Alegre, João Alberto seria agredido até a morte. O racismo usa todas as formas, até o assassinato, para dizer ao negro que ele não pertence ao lugar onde merece estar. Seja num supermercado, seja numa escola.

Carol estudou em boas escolas públicas. O pai era servidor do Tribunal de Justiça, a mãe, professora:

— Eu sou preta, preta retinta. E pobre. Mas o Brasil é tão desigual que o pouco que tínhamos acabou me levando a estar sempre onde havia poucos negros. Estudei em boas escolas públicas, mesmo sendo públicas, havia principalmente brancos.

Estudiosa, ela tirava notas boas. Certa vez, uma professora mostrou o quanto isso a incomodava.

— Ela me disse: ‘você tirou nove?’ E me separou de minhas amigas, mandando eu sentar na última carteira.

Um dia, o pai comprou para ela uma bicicleta nova e ela foi para a escola com a sua bicicleta:

— Fui hostilizada a tarde inteira, pelos meninos e meninas. Era como se eu, preta, não pudesse ter uma bicicleta novinha. Quando eu estava saindo para voltar para casa, umas crianças me perseguiram, me xingando e chutando a bicicleta. Eu cheguei em casa transtornada, chorando muito. Minha mãe foi à escola, um professor disse que viu. Viu e nada fez.

Ela se formou em História disposta a entender o passado, foi dar aula numa escola pública central e renomada. Reviu, numa aluna negra, a mesma história de injúria racial que viveu. Resolveu pesquisar o cotidiano dos alunos. Seu mestrado foi sobre as adolescentes negras da escola pública em Curitiba:

—Tudo foi se juntando. Curitiba é uma cidade que se proclama como europeia, que dá aos negros a sensação de não pertencimento. A vivência das mulheres e das mulheres negras, a luta pela educação de qualidade. Eu fui consolidando o entendimento. O muro é muito alto — nunca houve uma vereadora negra em Curitiba — mas decidi escalar. Era sonho e dava medo.

Ela realizou. Há outras vitoriosas. Ana Lúcia Martins (PT) foi eleita a primeira vereadora negra de Joinville. Foi ameaçada de morte. O Brasil muda devagar. Antes de terminar, Carol quis dar um último recado:

— As pessoas me perguntam se eu acho possível superar o racismo. Eu digo que obviamente sim, porque se ele foi criado, foi inventado, foi construído, pode ser desconstruído.

Que o sonho de Carol chegue logo. Já nos atrasamos muito.

Um comentário:

Unknown disse...
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