Só existem a boa política, que respeita os fatos e
oponentes, e a má, que nega a realidade
Para que serve um governo? Cuidar das
pessoas ou cuidar das empresas? É possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo?
São perguntas que simplificam uma
questão complexa -- mas que resumem, com clareza, o debate brasileiro nos
últimos oitenta anos.
A ideia vitoriosa nas duas ditaduras brasileiras do século passado, a de Getúlio Vargas e a dos militares -- e também do período democrático entre elas -- foi o nacional-desenvolvimentismo. Segundo essa corrente, cabia ao governo subsidiar setores da economia escolhidos a dedo.
De Getúlio aos militares, os governos
criaram copiosamente companhias terminadas em “brás” e incentivaram indústrias
como a automobilística. Cuidaram das empresas – estatais e privadas –, mas não
dos cidadãos. O baixo investimento em educação mostra isso de forma eloquente.
Durante a ditadura de Vargas, o valor oscilou entre 1% e 1,5% do PIB. Entre
1955 e 1975 subiu só um pouco, para 2%. Saúde pública também nunca foi
prioridade nos dois regimes autoritários.
Veio a redemocratização, e os
brasileiros, representados pelos constituintes de 1988, decidiram que os
governos deveriam cuidar das pessoas. Saiu de cena o
nacional-desenvolvimentismo e começou a era social-democrata. Ela teve seu auge
nos governos de Fernando Henrique e Lula. No ciclo tucano-petista, criaram-se o
Sistema Único de Saúde, os programas de combate à pobreza, e o gasto com
educação mais que dobrou, saltando para o patamar de 4,5% do PIB.
O debate sobre a função do Estado –
cuidar das empresas ou cuidar das pessoas? – foi retomado recentemente a
propósito do livro “O Dever da Esperança”, de Ciro Gomes. Em um ensaio crítico
sobre a obra, o economista Samuel Pessoa, defensor da postura social-democrata,
argumentou que, num país de orçamento apertado como o Brasil, não dá para
cuidar das pessoas e das empresas ao mesmo tempo. O desfecho inevitável é a
insolvência do País. Na era Dilma Rousseff, que se dizia desenvolvimentista,
uma recessão brutal jogou milhões de brasileiros na pobreza.
Nélson Marconi, que participou da
formulação do programa de Ciro na última eleição presidencial, defende que o
desenvolvimentismo, em sua versão moderna, nada tem a ver com estourar
orçamentos ou criar estatais. Ele acha possível o governo cuidar das pessoas e
das empresas mantendo-se na trilha da responsabilidade fiscal – Marconi é um
crítico da gastança do período Dilma.
(Existe uma terceira corrente, a
liberal, que defende a redução do Estado para soltar as amarras da economia.
Nunca fez muito sucesso no Brasil. Alguns liberais apoiaram o presidente Jair
Bolsonaro mas, sentindo-se ludibriados, desertam dia após dia, como mostra a reportagem
anexada à versão digital da coluna).
Os brasileiros têm gastado muito tempo
discutindo temas irrelevantes, como um suposto “perigo comunista” ou a falsa
oposição entre a “velha” e a “nova” política. Existem apenas a boa política –
aquela baseada no respeito aos fatos e aos oponentes – e a má, que nega a
realidade e desqualifica quem pensa diferente.
Passou da hora de retomar a conversa
inteligente e civilizada, característica da boa política. Nélson Marconi e
Samuel Pessoa, personagens dos mini-podcasts da semana, estão entre os vários
interlocutores qualificados no debate que importa -- e que, com sorte, deverá
prevalecer no ciclo da próxima eleição presidencial: aquele sobre o país que
queremos ter.
*Jornalista,
escritor e professor da Faap e do Insper
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