Cumpre
aos brancos antirracistas deixar claro que não são signatários deste pacto
perverso
Sempre
me perguntei o que leva um ser humano a humilhar, torturar ou matar um outro
ser humano. Não como uma conduta individual, fruto da maldade ou da insanidade
de um indivíduo, mas como conduta sistêmica, que pode ocorrer de forma
organizada, como num campo de concentração, ou de maneira difusa, como a
violência praticada cotidianamente contra a população negra no Brasil.
Como
explicar a violência que levou à morte
de João Alberto Silveira de Freitas, após ser covardemente espancado
por seguranças privados da rede de supermercado Carrefour, em Porto Alegre, na
véspera do Dia da Consciência Negra? Ou como compreender a morte do índio
Galdino, incendiado por alguns jovens em Brasília, enquanto dormia numa parada
de ônibus, após participar das comemorações do Dia do Índio, em abril de 1997?
Difícil
pensar que pessoas comuns, estejam elas na condição de agentes públicos ou
privados, ou de meros passantes em busca de entretenimento, como os jovens de
Brasília, sejam capazes de atos de tamanha crueldade, se não estiverem imersas
num contexto cultural e institucional tolerante e complacente com a barbárie,
como explicou Hannah Arendt, ao cunhar a expressão “banalização do mal” para
descrever a conduta de genocidas.
A
empatia, a percepção de que o outro, quem quer que ele seja, é merecedor
do mesmo
respeito e consideração que exigimos para nós mesmos, é condição
indispensável para a constituição de uma sociedade democrática. Sem que as
pessoas se vejam como reciprocamente iguais, dificilmente viveremos numa
sociedade justa, prospera ou pacífica. Não se trata, obviamente, de igualdade
física, étnica, cultural, de gênero ou mesmo cultural, mas de igualdade no
sentido moral, o que impõe a criação de condições materiais dignas para todos.
O racismo,
como tenho salientado nesta coluna, é uma invenção voltada a naturalizar a
exclusão, a subordinação e a exploração de uma parcela da população pela outra.
No caso brasileiro, o racismo é uma invenção branca que nega aos negros a
condição de sujeito dos mesmos direitos que os brancos reivindicam para si.
Quando arraigado culturalmente, como no Brasil ou nos Estados Unidos, o racismo
dificulta a generalização do respeito recíproco, inviabilizando a própria
aplicação da lei de maneira igual para todos. Onde prevalece o racismo não
floresce o império da lei.
O
fato é que a violência
contra negros não é apenas tolerada pelo racismo, mas é dele
constitutiva. Sem a violência, a dominação branca e a estrutura de uma
sociedade desigual e hierarquizada, com base na raça, não subsistiria. A
violência racial é uma forma de explicitação extrema de que os negros não são
sujeitos plenos de direitos, de que não há empatia em relação à dor ou ao
sofrimento dos negros, muito menos em relação às suas reivindicações por
justiça social.
O
movimento negro, com suas líderes e mártires, como Marielle
Franco, tem exposto a brutalidade e hipocrisia do pacto racial
brasileiro, extraindo avanços significativos em diversas frentes, mas sempre
insuficientes —especialmente quando mensurados em termos da violência imposta
aos corpos negros.
Há
uma longa agenda antirracista a ser abraçada, que passa pela expansão das
políticas de ação afirmativa, pela reforma do sistema criminal e por mudanças
no mercado de trabalho e na organização e conduta das empresas. Cumpre aos
brancos antirracistas, como insiste Sueli Carneiro, deixar claro que não são
signatários e nem querem ser beneficiários desse perverso pacto racial
brasileiro.
*Oscar
Vilhena Vieira, Professor
da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor
em ciência política pela USP.
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