A
sociedade americana optou por um presidente moderado e conciliador
A
histórica vitória de Joe Biden será analisada por muitos anos. O resultado da
eleição foi surpreendentemente equilibrado, refletindo a profunda divisão do
país. A onda azul, democrata, não se concretizou, mas a sociedade americana
preferiu eleger um presidente moderado e conciliador, que promete reduzir o
ódio e unir os EUA. O resultado das urnas mostrou que o eleitor separou a
figura do presidente falastrão do seu partido. O Partido Republicano, que teve
desempenho muito melhor que Trump, saiu fortalecido, com maior número de
deputados na Câmara dos Representantes e com a possibilidade de manter a
maioria no Senado.
A
polarização política nos EUA vem se acentuando nas últimas décadas e esse
quadro não se deve alterar no futuro previsível, em razão, entre outros
fatores, do aprofundamento, com a pandemia, dos contrastes existentes no país
mais rico e mais avançado do mundo. A crescente concentração de renda acentuou
as desigualdades entre as pessoas, as regiões e entre os centros urbanos e as
áreas rurais, fato agravado pelas consequências econômicas. O impasse, se o
Senado continuar republicano, dificultará a execução das reformas prometidas
por Biden nas áreas de saúde, economia, energia, imigração, meio ambiente e no
fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.
Os
EUA estão deixando de ser um país com maioria branca e calvinista para se
tornarem uma democracia multirracial e multicultural. Quase 75 milhões de
eleitores se manifestaram contra um presidente com abordagem não convencional
na política, negacionista, percebido como egoísta, mentiroso, vaidoso e que põe
seus interesses pessoais e eleitorais acima dos interesses do país. Trump impôs
políticas que favoreceram o populismo, o protecionismo, o racismo e o
isolacionismo, sempre ressaltando que isso ampliaria o emprego do trabalhador
norte-americano e reforçaria a ideia de que os EUA sempre estariam em primeiro
lugar. As políticas seguidas por Trump acentuaram o divórcio racial e os
conflitos relacionados à imigração. Em alguns Estados, porém, os votos de
jovens negros, latinos e muçulmanos foram acima do esperado para o Partido
Republicano, apesar de algumas políticas de Trump terem sido claramente
contrárias aos interesses dessas minorias. Acentua-se, assim, a divisão em
torno de temas culturais, enquanto há mais convergência em torno das políticas
econômicas, menos conflitivas por estarem voltadas para o crescimento do
emprego e da renda.
Apesar
da rejeição pessoal, as bandeiras que Trump levantou deverão permanecer. O
movimento populista, nacionalista e conservador se fortaleceu com o voto nas
áreas rurais, mais pobres, de maioria branca, sem instrução superior e de menor
renda. Os republicanos emergem estranhamente como o partido da classe
trabalhadora, mais afinado com os anseios da nova composição social e racial da
sociedade norte-americana.
Outro
aspecto relevante que ficou claro com os resultados eleitorais é a questão do
uso político da religião. O recado das urnas aos políticos foi claro: igreja e
Estado não devem ser misturados e confundidos. Os eleitores manifestaram-se a
favor de discussões sobre questões práticas que afetam diretamente seus
interesses e refutaram uma guerra religiosa, em especial contra imigrantes
muçulmanos.
As
incertezas que as transformações internas na sociedade norte-americana
acarretam deixam também uma lição sob o ângulo das relações externas. O
alinhamento político e econômico com os EUA é perigoso. Depender dos EUA não
representa um apoio estável de médio e longo prazos, dadas as modificações que
pode haver nas tendências dos eleitores em eleições seguintes. As políticas de
Trump em relação aos aliados dos EUA, no tocante aos organismos internacionais,
ao grau de confrontação com a China, à política de meio ambiente, deverão, como
já anunciado, ser modificadas no governo Biden. O que poderá acontecer em 2024?
Serão mantidas as políticas do governo democrata? Voltarão as políticas
isolacionistas?
Uma
vez que são muito fortes as instituições no país, as acusações de fraude e a
judicialização do processo eleitoral promovidas por Trump, que tantas
incertezas despertam e de certo modo representam um sério problema para o
funcionamento do sistema eleitoral, não chegarão a ameaçar a democracia, nem a
credibilidade das eleições, mesmo com eventuais violências isoladas.
Os
institutos de pesquisa voltaram a se equivocar de maneira grave. Os meios de
comunicação (TVs, jornais e rádios) tornaram-se, na prática, braços dos dois
partidos políticos, estimulando a divisão. O papel da mídia social foi menor do
que na eleição de 2016.
Ficam
no ar algumas perguntas. Dada a força de Trump como líder de uma parte do
Partido Republicano, e sobretudo pelo peso dos mais de 70 milhões de votos,
qual será o papel do atual presidente a partir de 20 de janeiro? Trump vai se
recolher, como fizeram todos os seus antecessores, ou continuar ativo no
Twitter, mantendo-se como uma presença forte no cenário político
norte-americano? A Constituição dos EUA determina que nenhuma pessoa poderá ser
eleita mais de duas vezes para o cargo de presidente. Trump poderá muito bem
querer se apresentar novamente em 2024. Como o Partido Republicano vai reagir
ao trumpismo?
*Presidente do IRICE
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