É
aposta na derrota desqualificar a legitimidade daqueles que votam em Trump — e
Bolsonaro
O
que ora vemos nos EUA é um dos futuros do Brasil. Este expediente golpista, de
acusar fraude no sistema eleitoral, será usado por Jair Bolsonaro daqui a dois
anos, qualquer que seja sua condição competitiva. Ninguém se poderá proclamar
surpreendido. O presidente brasileiro não esconde as cartas; ou não terá sido
ele, poucos meses atrás, a afirmar ter provas — jamais apresentadas — de que a
eleição de que saiu vencedor fora fraudada? Não falava de 2018, mas para 2022.
Donald
Trump ataca, em 2020, a mais poderosa expressão da democracia na América: o
voto combinado à independência federativa. Mobiliza suspeição sobre a integridade
da exata mesma estrutura descentralizada por meio da qual se elegeu em 2016.
Empreendimento especialmente grave porque mina — com mentiras vestidas de
teorias da conspiração — uma instituição, a tradição eleitoral americana,
fundada na confiança entre cidadãos.
Não
se trata de um mau perdedor, com o que se confundiria com uma criança. Mas de
um sabotador. Um populista autoritário que manipula, como fazem os
personalistas, a fantasia influente sobre a própria potência. Ou seja: alguém
como ele não perde senão roubado — eis a mensagem, destinada a fomentar o
choque e manter ativa a militância.
Trump
fala para 2024 e age amparado por um precedente lamentável, embora de natureza
diversa. Judicialização de processo eleitoral é sempre trauma. Refiro-me à
eleição de 2000; aquela em que o democrata Al Gore levou a apertada derrota
para o republicano George W. Bush à Suprema Corte. Dirão ambas as partes, os
democratas de então e os republicanos de hoje, que recorrer à Justiça é do
jogo. Certo. Vendo agravar-se fissura nunca curada, digo eu que, do jogo,
certamente não é, ancorar as demandas judiciais plantando dúvida, sem provas,
contra um pacto social, o eleitoral, dependente de boa-fé. Democratas afirmam
que assim procedem agora os republicanos. Republicanos, que assim procederam os
democratas há 20 anos. Aí está. Não é belo; sendo óbvio o tipo de oportunista
que se beneficia do império da suspeição.
Trump
opera a desconfiança com maestria. Mas só o faz porque produto de uma grande
parcela da sociedade americana que descrê. E que, porque descrê, endossa que
seu presidente dilapide pilares civilizacionais e aposte na cultura da
suspeita. Ele é a manifestação de uma doença no pulmão da democracia liberal.
Um sintoma que teve mais de 70 milhões de votos, muitíssimos dos quais ou não
acreditam ou não se importam que um aparato eleitoral vigente há mais de dois
séculos seja esculachado.
Esperava-se
— nas bolhas elitistas — que das urnas emergisse dura resposta a Trump. A
realidade que se impõe é outra, porém. Ele perde, mas fica. Vasta porção da
comunidade está de saco cheio do sistema e sustenta as condições permanentes
para que discurso e prática trump-bolsonaristas, de desconstrução
institucional, prosperem. Boa parte da sociedade americana — idem a brasileira —
não acredita que o establishment, aí incluído o aparelho eleitoral,
represente-a, que cuide de seus interesses. Há uma erosão agressiva do valor da
representação. É daí que se eleva o populismo autoritário.
É
erro grave enfrentar o que Trump e Bolsonaro são criminalizando aqueles que
representam. Eles representam gente. Milhões de pessoas. É erro estúpido, obra
de arrogância, aposta na derrota, desqualificar a legitimidade daqueles que
votam em Trump — e Bolsonaro — como se fossem monstros fascistas ou imbecis
alienados. Trump, como Bolsonaro, é fruto do esgarçamento do tecido social;
esgarçamento que decorre de as pessoas sentirem, na pele, que o fosso se alarga
e aprofunda entre elas e aqueles que as deveriam defender. Descrença. As
pessoas estão convencidas de que o establishment se voltou para si, que existe
apenas para cuidar dos próprios interesses, o que vai agravado — no caso
brasileiro — pelo processo de condenação da atividade política.
O
fosso aumenta. A antiga classe média, outrora liga, perde — perdeu — a
musculatura. Amplia-se o volume de excluídos. Amplia-se a sensação de desamparo
dos que se sentem traídos, abandonados, pelas elites político-econômicas. A
ideia de voto se deteriora. Amplia-se a base de ressentimentos e de
ressentidos. É o circuito que alimenta a desconfiança.
O
trump-bolsonarismo é um orgânico complexo enriquecedor e explorador de
ressentimentos. Chamar de gado quem dá vazão a suas insatisfações-desilusões
votando em Bolsonaro é empurrar ainda mais esses indivíduos aos braços do
populismo; equivale a tratar como bovina uma rara escolha — talvez a forra — de
quem muitas vezes nunca tem escolha. Trump e Bolsonaro ascendem dessa captação
de sentimentos, desse arrebanhar de impotentes. Eles atacam as instituições
republicanas autorizados por uma engrenagem de descrenças que processa
República como coisa de poucos.
Vá
falar a um desempregado, cuja esperança é não ter o filho cooptado pelo
tráfico, sobre a importância da democracia... Trump ora se insurge — será
Bolsonaro amanhã — contra o mesmo sistema que o cidadão do país profundo sente
que o exclui. Eles têm mandato para isso. É preciso entender o recado dessas
pessoas.
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