No
Brasil, funcionários públicos e suas famílias estão acima de quem paga impostos
A
diferença entre regimes absolutistas e Repúblicas modernas reside nos direitos
usufruídos pelas hierarquias do Estado. Para garantir apoio ao rei e à
centralização do poder o Antigo Regime concede privilégios ao clero e aos
nobres. Isenção de impostos, cargos públicos, dignidades, pensões e prebendas,
regalos que minam os cofres nacionais. Naquela forma política existem dois
setores. O primeiro reúne funcionários estatais. Ministérios, empregos civis e
militares se destinam aos nobres. Os padres cumprem idênticas funções, menos as
militares. Mas Richelieu se apresenta sob armadura, líder dos ataques aos
nobres protestantes. O cerco de La Rochelle mostra um cardeal bélico e político
que tenta esmagar minorias.
Nobres
e clero recebem trato diferenciado na vida política, econômica, cultural.
Quando não herdam cargos e privilégios, seus integrantes os compram. A garantia
do poder centralizador, portanto, está na corrupção e na venda de apoio ao
governante.
Daí surge a bipartição das pessoas. Quem se move no aparelho do Estado usufrui prerrogativas e privilégios, generosos se o rei precisa de ajuda. No outro lado, as pessoas sem prerrogativas nem privilégios, salvo quando elas possuem dinheiro para comprar cargos. O Estado ostenta dois tipos de súditos: os que recebem todas as graças, o clero e a nobreza, e os que integram um terceiro setor sem rosto próprio.
A
Revolução Inglesa do século 17 institui a República, atenua os privilégios,
amplia os direitos universais. Um exemplo: no exército os postos são herdados pelos
nobres ou adquiridos por graça real. Como os aristocratas usam perucas enormes,
símbolo de sua superioridade, os republicanos abolem as ditas perucas,
uniformizam o corte de cabelo, estabelecem critérios de mérito para a entrada
na hierarquia das forças armadas. É o tempo dos cabelos militares curtos
(os Roundheads,
simultâneos ao New
Model Army, cuja estrutura é oposta à do Antigo Regime), que
desafiam os privilégios dos nobres. Em todos os setores do Estado republicano
ocorrem mudanças rumo à igualdade.
Os
puritanos, expulsos da Inglaterra por sua fé religiosa e política, fundam na
América do Norte um Estado no qual, em vez da pretensa superioridade de elites,
regem o princípio da accountability (retomado
pelos republicanos da ordem democrática grega), a livre imprensa (basta ler a Areopagítica, de John Milton)
e direitos iguais. A presença norte-americana na Revolução Francesa é
relevante: liberdade, igualdade, fraternidade.
As
origens sociais (nobre/plebeu) deixam de valer no Estado moderno. Um
funcionário, juiz da mais alta Corte ou governante, não herda nem transmite
cargos ou privilégios aos seus familiares. Entra-se na hierarquia estatal por
mérito (concurso) ou por eleição popular. Nos Estados Unidos vigoram as duas
formas: juízes são concursados ou eleitos. Em ambas as hipóteses as vantagens e
desvantagens dos cargos pertencem ao indivíduo, não à sua família. Esta última
pode ter importância nas campanhas políticas ou em acertos financeiros ilegais
para provimento de funções. Mas a regra é a plena separação dos indivíduos e de
sua grei familiar.
Certa
feita sou convidado para a posse de um desembargador amigo. Chego ao salão,
onde fitas de isolamento separam dois terços do espaço. Uma hostess vestida de vermelho –
o Judiciário aprecia muito tal cor – me pergunta: “O senhor é de alguma família
ou apenas convidado?”. Apenas convidado... Espantei-me: na casa da Justiça
paulista uma cerimônia pública reduzida a festinha “dos entes queridos”! O
Estado posto como propriedade familiar: dois terços para os familiares, um
terço para a cidadania. É o que vemos no Brasil, renitente em usos e costumes absolutistas,
pré-republicanos. Os funcionários – juízes, parlamentares, governantes – e suas
famílias estão acima dos que pagam impostos.
No
final de 2020 continua a ausência total de accountability nos Poderes nacionais: Executivo,
Legislativo, Judiciário. A cidadania recebe nova bofetada absolutista na face:
o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ),
pretensos garantidores da República e da igualdade, exigem tratamento especial
na aplicação de vacinas contra a covid para seus integrantes e familiares. O
sistema político e jurídico deve ser coerente: na Constituição republicana as
leis precisam ser assumidas por todos e cada um dos cidadãos. Ninguém vive com
segurança num país onde ocupantes dos Poderes podem, pelo uso de sua carteira
profissional ou por importância política, separar o corpo nacional em dois,
como no Antigo Regime. Com o ato ignóbil dos tribunais superiores é solapada a
base física e anímica da República. Cortes são necessárias para manter a lei.
Mas se elas próprias corroem a fé pública com exigências de privilégios – no
caso, a vida e a morte dos brasileiros estão em jogo –, perdem serventia e
podem ser fechadas sem grandes comoções públicas.
Termino:
os excelentíssimos magistrados deveriam estudar a história do STF e do STJ. Dos
muitos feitos execráveis desses tribunais, a carteirada na fila das vacinas é
dos mais hediondos.
*Professor
da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)
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