Depois
do festival de bobagens de 2020, governo começar o novo ano poupando a plateia
de teorias conspiratórias, novas catástrofes e bodes expiatórios
Em
agosto de 2019, quando Alberto Fernández venceu as primárias para a Presidência
da Argentina, Jair Bolsonaro resolveu atravessar a fronteira para escorregar
numa casca de banana em terras alheias:
“Não
esqueçam do que, mais ao Sul, na Argentina, aconteceu nas eleições de ontem. A
turma da Cristina Kirchner, que é a mesma de Dilma Rousseff, que é a mesma de
Hugo Chávez, de Fidel Castro. (...) Se essa esquerdalha voltar aqui na
Argentina, nós poderemos ter no Rio Grande do Sul um novo estado de Roraima”.
Era
o tempo em que venezuelanos atravessavam a fronteira e vinham para o Brasil.
Hoje os brasileiros gostariam de dar um pulinho na Argentina. Lá, desde a
semana passada, a população está sendo vacinada contra a Covid.
Virou
o ano, o Brasil não tem vacinas, a Anvisa do almirante e o ministério da Saúde
do general estão atordoados pelo negacionismo que Bolsonaro impôs ao seu
governo. Ganha uma fritada de morcego do mercado de Wuhan quem souber o que fez
o comitê interministerial criado em março para lidar com a pandemia.
Na exortação de agosto de 2019, Bolsonaro mostrou o lado apocalíptico de sua retórica. Quando ele falou na “gripezinha”, quando defendeu as virtudes da cloroquina e até mesmo quando classificou a segunda onda da pandemia de “conversinha”, manipulava a ignorância num processo de simples empulhação. Se tivesse razão (e não a tinha), as coisas poderiam melhorar. Quando falou num possível êxodo de argentinos, manipulava o apocalipse, e aí está o perigo, pois a Constituição lhe assegura mais dois anos de mandato.
O
catastrofismo tem algo de impessoal. Quem anuncia catástrofes dissocia-se dos
problemas. O capitão despediu-se de 2020 no meio da segunda onda de contágio,
encostando nos 200 mil mortos. Aproveitou a oportunidade para anunciar que “nós
podemos trazer o caos para cá” com “essa política de fechar”: “Esse inferno,
essa assombração, está voltando, por irresponsabilidade de fechar tudo .”
Conversa
velha. Em março, quando havia apenas um morto, Bolsonaro dizia que “se ficar
todo mundo maluco, as consequências serão as piores possíveis”. Ninguém ficou
maluco. Ele acrescentava: “Tem locais em alguns países em que já tem saques
acontecendo, isso pode vir para o Brasil, pode ter aproveitamento político em
cima disso”. Salvo os desordeiros que organizam aglomerações, nada disso
aconteceu.
O
profeta da catástrofe sempre tem um medo. Bolsonaro explicitou o seu: “Está
havendo uma histeria. Se a economia afundar, afunda o Brasil. (...) Se acabar a
economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta pelo poder”.
Quando
surgiu um boato delirante de decretação do estado de sítio, Bolsonaro
desmentiu-o, com uma ressalva: “Ainda não está no nosso radar isso, não.” Não
estava? Na semana seguinte, diante das manifestações que aconteciam em
Santiago, profetizou:
“O
que aconteceu no Chile vai ser fichinha perto do que pode acontecer no Brasil.
Todos nós pagaremos um preço que levará anos para ser pago, se é que o Brasil
não possa ainda sair da normalidade democrática que vocês tanto defendem. (...)
O caos está aí na nossa cara”.
Um
dia, Bolsonaro viu o caos e divulgou-o: Era um vídeo que mostrava a central de
abastecimento de Belo Horizonte, deserta. “São fatos e realidades que devem ser
mostradas”, escreveu o presidente. Era mentira e desculpou-se.
Na
tenebrosa reunião do ministério de abril, Bolsonaro expôs seu medo:
“A
desgraça tá aí. Eles vão querer empurrar essa ... essa ... essa trozoba pra
cima da gente.”
Não
foi Bolsonaro quem criou o vírus, nem foi o vírus quem inspirou o almirante da
Anvisa e o general da Saúde para criarem uma situação na qual faltam vacinas,
seringas, agulhas e sabe-se lá mais o quê.
Depois
do festival de bobagens de 2020, esses doutores poderiam começar o novo ano
poupando a plateia de teorias conspiratórias, novas catástrofes e bodes
expiatórios. Como são todos militares, podem recordar o exemplo do general
Dwight Eisenhower na véspera do desembarque Aliado na Normandia, em 1944. Ele
redigiu uma curta nota para a hipótese do fracasso.
Elogiava
todo mundo e concluía: “Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é
só minha”.
O
tenente alemão
No
início da manhã de 6 de junho de 1944, o tenente alemão Cornelius Tauber estava
na Normandia e viu o início do desembarque dos Aliados.
Ele
esperava que as coisas acontecessem como nas guerras passadas e surpreendeu-se:
“Não vieram cavalos. Toda aquela tropa e nenhum cavalo.”
A
logística dos Aliados não incluía quadrúpedes, só veículos e tanques. (Em 1941,
quando a Alemanha invadiu a Rússia, seu Exército ainda dependia de 600 mil
cavalos.)
O
general e os oficiais que Bolsonaro botou no ministério da Saúde ficaram sem
vacinas e seringas. Achavam que, como grandes compradores, estavam numa posição
em que poderiam impor condições aos fornecedores. Como disse o capitão:
“O
Brasil tem 210 milhões de habitantes, um mercado consumidor de qualquer coisa
enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a
gente?”
Se
Bolsonaro tivesse feito essa pergunta ao economista Paulo Guedes, teria
descoberto o tamanho de seu terraplanismo econômico. Segundo a lei da oferta e
da procura, quando há muita oferta, manda quem compra, mas quando há muita
procura, manda quem vende. Com sua experiência no mundo do papelório, Guedes
poderia lhe explicar também os mecanismos de condicionantes para compras
antecipadas.
Mando,
logo existo
Para
quem não sabe, existe um Comitê para Gestão da Rede Nacional para a
Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios. A girafa
mora na capitania do ministro Paulo Guedes e decidiu criar o “licenciamento
urbanístico integrado”.
Ele
estabelece que obras de até 1.750 metros quadrados podem ser liberadas com a
ajuda de um processo eletrônico.
Sabe-se
que há muita roubalheira nas burocracias que liberam obras. Sabe-se também que
o ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, deixou de ser flor do
orquidário de seu colega Paulo Guedes. Não custava ter ouvido alguns
interessados, e não só alguns operadores do mercado imobiliário.
Eremildo,
o idiota
Eremildo
é um idiota e acha que os ministros do Supremo são todos infalíveis. Ele se
assustou com a saia justa revelada pelo ministro Marco Aurélio: a sinopse de
notícias enviadas aos doutores sumiu com duas reportagens que tratavam da
operação fura-fila das vacinas. Armada em nome da Corte.
O que o cretino não entende é por que os ministros precisam de sinopses das notícias. Como ele é um idiota, talvez precisem do mimo. Nesse caso, porque não o colocam na rede, para usufruto de quem lhes paga os salários?
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