Parece
que viramos a página: ficou escancarado em 2020 que, sem o outro, não somos nem
seremos
Individualmente,
nunca se saberá quem mais sofreu neste soturno ano de 2020. Coletivamente a
resposta é fácil: foi a arte. Mas qual delas? Aquela que independe de qualquer
genialidade ou talento específico para existir: a arte de viver. Para quem teve
o privilégio de não estar entre as quase 2 milhões de pessoas levadas pela
Covid, sobreviveu com medo, aceitou perdas, adequou-se ao vazio e ao silêncio,
reinventou-se como pôde no confinamento abrupto. Sempre fomos moldáveis na arte
de viver para conseguirmos sobreviver e dar sentido à espécie. 2020 quase nos
tirou do prumo através de seu cortejo fúnebre. Mas parece que viramos a página:
ficou escancarado que, sem o outro, não somos nem seremos.
Se
viver é a maior das artes, a poesia vem logo atrás. Ela tem o poder de libertar
as profundezas do possível, de restaurar zonas entumecidas. Ser alcançado por
um poema de Armando Freitas Filho na hora certa é um choque transformador,
libertador.
Em
meio à clausura mundial de 2020, nada mais atual do que a meditação sobre a
saga humana feita por John Donne 400 anos atrás. Donne, um dos maiores poetas
de língua inglesa de todos os tempos, estava seriamente enfermo quando escreveu
em prosa a “Meditação XVII” :
— Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é parte de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai por quem os sinos dobram; eles dobram por vós.
Donne
foi homem de fé. Fé absoluta em Deus e convicto de que a humanidade só avança
se compartilhada. O escritor americano Ernest Hemingway foi o oposto: era ateu
roxo, ímpio por opção e incréu pelo que vivenciou. O que não o impediu de
recorrer a Donne para o preâmbulo e título de uma de suas obras mais famosas,
“Por quem os sinos dobram” (1940), romance sobre o fracasso humano na Guerra
Civil espanhola.
Outro
poeta-monumento, o galês Dylan Thomas, ao ver o pai moribundo e sem amparo da
fé, criou um poema de resistência. “Não entres nessa noite acolhedora com
doçura/ Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia/ Odeia, odeia a
luz cujo esplendor já não fulgura...”, dizem os 19 versos que convidam a não
nos dobrarmos pacificamente ao inevitável. “Do not go gentle into that
good night”, publicado em 1951, tornou-se um tesouro da língua inglesa, uma ode
à tenacidade do espírito humano. Vem muito a calhar neste início de 2021.
Difícil
saber no que se agarrar. Se o otimismo é uma forma alienada de fé, e pessimismo
é uma forma alienada de desespero, como defende um grande humanista dublê de
psicólogo, resta a fé racional no espírito humano. Simone de Beauvoir
descreveria essa fé como esperança, “contrapeso lúcido e musculoso ao otimismo
cego... esperança de que a verdade possa ser usada”.
Tempos
atrás, quando a espécie humana ainda procurava se reconciliar com as ruínas da
Segunda Guerra, a NPR, sigla da rede de rádio pública dos EUA, convidou 80
famosos e anônimos a sintetizarem seu credo pessoal de como tocar a vida. As narrativas,
porém, precisavam caber em 100 palavras, proposta radical para tempos em que o
mundo não girava em torno de 140 caracteres. Entre os participantes, uma
vendedora de enciclopédias de porta em porta e John Updike, uma ajudante
hospitalar e Eleanor Roosevelt. Havia, sobretudo, Thomas Mann, Nobel de
Literatura e autor do colossal romance “A montanha mágica”.
Mann
começa constatando que, apesar de a vida ser possuída por uma tenacidade
assombrosa, nossa presença sempre será condicional. “Somente por este motivo
acredito que a vida tem um valor e charme vangloriados em excesso”, escreveu.
Sua crença maior, e no que depositava maior valor, era justamente o caráter
perecível dessa presença: “A transitoriedade é a própria alma da
existência. Ela dá valor, dignidade, interesse à vida. A transitoriedade cria o
tempo... E, ao menos potencialmente, o tempo é a dádiva suprema, a mais útil.
Sem começo ou fim, nascimento ou morte, também o tempo inexiste”. Sobraria
um nada estagnado.
A cada um sua arte de viver. Da recomendada por John Donne há séculos à entoada com urgência por Emicida, hoje vamos de “AmarElo”: “Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas esse ano eu não morro”.
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