segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Fareed Zakaria – Aos poucos, a democracia perde seus guardiões

- The Washington Post / O Estado de S. Paulo

Quando partidos perdem a capacidade de policiar seus extremistas, coisas nefastas acontecem para a democracia.

A questão central da política americana – com implicações globais – hoje é saber se o Partido Republicano poderá se livrar dos seus elementos mais radicais. Obviamente, isso tem a ver com o ex-presidente Donald Trump, mas também vai além dele. A atual bancada republicana no Congresso inclui pessoas que insistem que a eleição de 2020 foi fraudada, que estão ligadas a grupos extremistas, trafegam no antissemitismo, e no passado propagaram as ideologias do Qanon. No plano estadual, muitas vezes, a situação é ainda pior. Durante anos, os republicanos tradicionais toleraram essas vozes e pontos de vista. O partido conseguirá encontrar uma maneira de finalmente controlá-las?

A resposta a essa pergunta poderá determinar o futuro da democracia americana. Em um brilhante trabalho acadêmico, Conservative Parties and the Birth of Democracy (“Partidos conservadores e o nascimento da democracia”, na tradução livre), Daniel Ziblatt, da Universidade Harvard, revelou o segredo do motivo pelo qual, no início do século 20, o Reino Unido continuou uma democracia e a Alemanha enveredou para o fascismo. O Partido Conservador britânico pôde disciplinar os seus extremistas.

Antes da 1ª Guerra, por muitos anos, os conservadores britânicos enfrentaram a ameaça de elementos antidemocráticos em seu partido, particularmente na Irlanda do Norte. O Partido Tory, forte e hierárquico, foi capaz de neutralizar essas facções e estabilizar a democracia britânica.

Na Alemanha, entretanto, o principal partido conservador, o DNVP, era fraco e desorganizado, e dependia da ajuda de grupos externos. Isso proporcionou uma abertura para o nacionalista Adolf Hugenberg, uma encarnação inicial de Rupert Murdoch, que usou o seu império de mídia e suas relações na área de negócios para assumir o controle do partido e tentar encaminhá-lo para a direita.

O conflito interno esvaziou toda a força do partido, e muitos dos seus eleitores começaram a bandear-se para as alternativas da extrema direita, como o Partido Nazista. Hugenberg aliou-se a Hitler, acreditando que esta seria uma maneira de assumir o controle do movimento conservador. O resto é história.

Não estou comparando os republicanos radicais aos nazistas. Estou apenas ponderando que, quando partidos perdem a capacidade de policiar os seus extremistas, coisas nefastas acontecem não apenas para o partido, mas também para a democracia.

Grande parte do Partido Republicano de hoje já está permeado de radicalismo. Segundo uma recente pesquisa do American Enterprise Institute, 56% dos republicanos acreditam que “o tradicional ‘estilo de vida americano’ está desaparecendo tão rapidamente que talvez precisemos usar a força para salvá-lo”. Trinta e nove por cento apoiam uma posição ainda mais forte. “Se os líderes eleitos não protegerem a América, o povo terá de fazêlo por si, mesmo que isso exija ações violentas”. Esses princípios não são compatíveis com a democracia.

O Partido Republicano perdeu o controle das forças que há muito tempo vem encorajando. Um primeiro reconhecimento desse fato ocorreu nos anos 80, segundo o livro de David Frum, Dead Right. De acordo com os conservadores, eles finalmente tinham assumido o poder pela primeira vez desde o reinado de Franklin Roosevelt, nos anos 30. Agora, poderiam repudiar o New Deal e a Grande

Sociedade. No entanto, como perceberam logo, o público se opôs totalmente a isso. Desde então, os republicanos se sentiram à vontade mentindo ao seu eleitorado.

Com o tempo, o partido passou a ser controlado pela turba cada vez mais frustrada. Basta considerar a diferença entre as paralisações do governo de meados dos anos 90 e de 2013. Os primeiros foram planejados centralmente e dirigidos pelo líder republicano da Câmara, Newt Gingrich; os segundos foram exigidos pelo “Tea Party”, e embora o então presidente da Câmara John Boehmer concordasse, acabou sendo despido do cargo por aqueles mesmos radicais.

Em 2016, o Partido Republicano não conseguiu se unir para derrotar e expurgar Trump. A hierarquia do partido perdera o seu prestígio. Além disso, outros candidatos à presidência, como os senadores Ted Cruz e Marco Rubio quiseram cortejar a base trumpista, e não aliená-la. Alguns líderes, como Mitt Romney, condenaram Trump, mas isso foi pouco e tarde demais.

Os partidos políticos americanos tornaram-se perigosamente fracos. Antigamente, eles escolhiam os candidatos à presidência para apresentar ao público. Agora, os eleitores das primárias – frequentemente mais radicais do que a própria liderança do partido – usurparam essa função fundamental. Antes, os partidos controlavam os fundos de campanha. Agora, graças a diversas sentenças da Suprema Corte, grupos externos têm muito mais dinheiro e influência do que tinham anteriormente.

Portanto, é improvável que o Partido Republicano consiga disciplinar seus elementos mais radicais. Alguns esperam que as derrotas eleitorais possam forçar essas ações. Mas é preciso lembrar que, enquanto 2020 foi um ano ruim para Trump, não foi tanto para outros republicanos. O partido perdeu o controle do Congresso por uma margem bastante pequena, mas foi bem nos Legislativos estaduais, às vezes, com a ajuda da supressão e da manipulação de eleitores.

Na Europa, os partidos não se deixaram conquistar pelas forças radicais porque têm estruturas internas mais fortes, mas eles também estão enfraquecendo. Em toda parte, a mídia se estilhaçou e foi descentralizada, tornando mais difícil o expurgo das vozes extremistas. Estamos caminhando para um mundo em que as democracias têm cada vez menos guardiões. Se não nos conscientizarmos disso, teremos embarcado em uma nova e perigosa experiência em governança.

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