Retirada americana do Afeganistão é tão inevitável quanto a do Vietnã
No 11 de
setembro, exatos 20 anos depois dos atentados jihadistas de 2001, as forças
americanas e da Otan deixarão o Afeganistão, encerrando a mais longa
guerra da história dos EUA. Quase meio século atrás, em janeiro de 1973, os
Acordos de Paris colocaram ponto final no envolvimento militar dos EUA no
Vietnã. No 30 de abril de 1975, as forças do Vietnã do Norte capturaram Saigon,
capital do Vietnã do Sul. De quanto tempo, depois de setembro, precisará o
Taleban para tomar Cabul?
O
Afeganistão, cemitério de potências, foi o palco principal do Grande Jogo, a
disputa política, diplomática e militar travada entre os impérios britânico e
russo, desde 1830 até 1895, pelo controle sobre a Ásia Central. No país
montanhoso, dominado pela cordilheira do Hindu Kush, sem saídas marítimas,
a URSS travou
sua última guerra, de 1979 a 1989, o conflito que empurrou o Império
Vermelho ao precipício. O Taleban e a Al Qaeda nasceram das ruínas daquela
guerra.
Obama
definiu a intervenção americana no Afeganistão como a “guerra inevitável”, por
oposição à “guerra estúpida” no Iraque. O 11 de setembro de 2001 não deixava
alternativa senão a derrubada do
regime do Taleban e a eliminação das forças da Al Qaeda
abrigadas no país.
Mas George W. Bush e, especialmente, o cortejo de neoconservadores que comandaram sua política externa, queriam mais. A ambição geopolítica de hegemonia sobre o “coração da Ásia” inspirou a estratégia de “construção da nação” —e, por consequência, uma prolongada ocupação do Afeganistão. A “guerra inevitável” converteu-se numa segunda “guerra estúpida”.
Nos
EUA, desde Woodrow Wilson, a realpolitik deve ser coberta pela túnica dos valores
e ideais. Prometeu-se
aos afegãos democracia, liberdades públicas, a igualdade das mulheres. A
Constituição de 2004 garante, ao menos em palavras, os direitos básicos de
cidadania. Ironicamente, sob esse ponto de vista, a presença militar americana
separa os afegãos do fundamentalismo religioso tirânico. O dia da queda de
Cabul marcará um bárbaro retrocesso.
A
retirada do Afeganistão é tão inevitável quanto a do Vietnã —e por razões
similares. Os americanos cansaram das guerras sem fim e, para eles, sem
sentido. Os Acordos de Paris de 1973 foram negociados por todas as partes,
inclusive o Vietnã do Sul, e previam um cessar-fogo. Dessa vez, os EUA correram
rumo à porta de saída. Trump firmou
com o Taleban um acordo de paz bilateral, que excluiu o governo
afegão e só previne ataques contra as forças ocidentais. Biden adotou-o quase
por inteiro, apenas postergando em quatro meses a retirada.
“Nós
ganhamos a guerra e os americanos perderam”, declarou Haji Hekmat, um alto
comandante do Taleban, enquanto Biden anunciava a data fatal. O Exército
afegão, composto por 175 mil tropas e 150 mil paramilitares, é um tigre de
papel. Sem o apoio aéreo fornecido pelos EUA, ninguém acredita que sobreviverá
ao choque direto com o Taleban. Vietnã, outra vez.
Na
hora da queda de Saigon, em operação frenética, os EUA evacuaram mais de 7.000
pessoas, inclusive milhares de políticos e funcionários sul-vietnamitas. Nos
anos seguintes, centenas de milhares embarcaram em frágeis botes para tentar a
travessia do golfo da Tailândia e do mar do Sul da China. Mesmo assim, o êxodo
abrangeu um setor minoritário associado, direta ou indiretamente, ao antigo
regime.
Não
haverá helicópteros americanos no dia da queda de Cabul. O povo afegão será
deixado para trás, nas mãos dos fanáticos do Taleban e sua polícia religiosa.
As mulheres serão trancafiadas em casa e não haverá escola para as meninas.
*Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário