O
Brasil precisa sair do transe e recuperar o debate racional a partir dos fatos
“Sempre teremos Paris.” A frase famosa é
de Rick Blaine, personagem de Humphrey Bogart no filme Casablanca –
e era válida, até pouco tempo atrás, para o Brasil da covid-19. Com os
principais aeroportos do mundo fechados aos brasileiros, a França era
um dos poucos países que aceitavam nossos compatriotas – devidamente testados e
temporariamente confinados. Na terça-feira dia 13, no entanto, o governo
francês decidiu que não mais receberia aviões provenientes do Brasil. Não
teremos mais Paris.
A
sessão do Parlamento francês que decidiu pelo fechamento de aeroportos foi um
dos dois recados que o mundo deu, ao longo da semana, à ilha chamada Brasil.
Ele veio em forma de sarcasmo. O primeiro-ministro Jean Castex fez
piada com a obsessão do governo brasileiro por tratamentos sem comprovação
científica, em especial à base de cloroquina. Os deputados franceses caíram na gargalhada. O
vídeo viralizou nas redes sociais.
O segundo recado veio da comunidade acadêmica. A revista americana Science, uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo, fez um balanço do fracasso brasileiro no combate ao coronavírus. O governo federal foi considerado o principal culpado, por sua “falha em implementar respostas rápidas, coordenadas e equilibradas num contexto de desigualdades locais agudas”. Novamente surgiu, como fator agravante, o debate estéril sobre medicamentos sem eficácia comprovada: “A resposta federal foi uma perigosa combinação de inação e erros, incluindo a promoção do tratamento com cloroquina sem evidência alguma”.
A
risada dos deputados franceses e o juízo da revista americana apontam para um
mesmo fenômeno, o da desinformação – que ceifa vidas na pandemia e mina os
regimes de liberdade. “A democracia depende da interlocução racional dos vários
atores, a partir de fatos que todos aceitam”, diz o jornalista Eugênio Bucci,
colunista do Estadão e personagem do minipodcast da semana. Vale
lembrar a frase popularizada pelo senador americano Daniel Patrick Moynihan: “Qualquer um tem direito às próprias
opiniões, mas não aos próprios fatos”.
Entre
vários livros, Eugênio é autor de Existe democracia sem verdade factual?.
Segundo ele, as instituições se veem ameaçadas sempre que as instâncias
comprometidas com a busca dos fatos – as universidades, os institutos de
pesquisa, o jornalismo profissional – são desacreditadas ou atacadas pelos
governos. Plataformas digitais que estimulam a emoção em detrimento da razão
são ideais para tais ataques. Em vez do debate público, cria-se, segundo
Eugênio, um clima de “superstição pública”.
Como
sugere a revista Science, o fracasso brasileiro no combate à covid-19 se
deve, em grande parte, à proliferação de “superstições públicas” – como o tal
tratamento à base de cloroquina. O Brasil precisa sair do transe e recuperar, o
quanto antes, o debate racional a partir dos fatos. Para Eugênio, só a boa
política, aquela que se tece sobre o diálogo maduro, pode encaminhar a
resolução de nossos problemas. Hoje, eles são enormes. Duas tragédias –
humanitária e econômica – que resultaram da má gestão da pandemia.
O
mundo já gritou, em inglês e francês, que tem medo do criadouro de variantes em
que nos transformamos. Se não corrigirmos logo o rumo, seremos vistos, cada vez
mais, como uma ilha indesejável, lamentada por seus mortos e ridicularizada por
suas superstições.
*Escritor, professor da Faap e doutorando em ciência política na Universidade de Lisboa
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