- Folha de S. Paulo
A gestão da pandemia tornou a crise
crônica; uma agonia que será prolongada
No domingo (23), depois de desfilar com
um séquito de motoqueiros pela zona sul do Rio de Janeiro, o
presidente declarou a uma aglomeração de adoradores que “estamos no final de
uma pandemia, se Deus quiser”.
No dia seguinte e no mesmo tom, o ministro
Paulo Guedes discorreu nesta Folha sobre a recuperação da
economia brasileira, que “surpreenderá o mundo”. Falou também de seus planos
para este ano, repetindo velhos objetivos que não saíram do papel: reforma
administrativa, reforma tributária e privatizações.
Acenou também com nova versão do Bolsa
Família, financiada mediante a venda de estatais —o que, para variar, ainda
está por ocorrer. Para o clarividente doutor, a pandemia parece que já se
aproxima do fim e seu legado trágico não requer atenção especial.
Nada mais fantasioso. Como observou dias atrás o economista Ricardo Paes de Barros (Insper-SP) ao jornal Valor, a gestão da pandemia tornou a crise crônica; uma agonia da qual só se sabe que será prolongada.
Sem coordenação nacional, com o combate ao
vírus descentralizado nos governos subnacionais, além de sabotado pelo Planalto
e o Ministério da Saúde, chegou-se
a uma perversa estabilidade. Na melhor das hipóteses, a taxa de
transmissão da Covid segue há muito tempo em torno de 1 —ou seja, em média uma
pessoa repassa o vírus para outra— sem redução significativa que permita de
fato a volta à normalidade imaginada pelo ex-capitão e seu ministro. Emenda-se
uma onda na seguinte e assim sucessivamente com tantas quantas se formarem.
A continuidade da epidemia em patamar alto
não cobra apenas a exorbitância das mortes evitáveis —como se já não fosse
pouco. Agrava desigualdades de
todo tipo, pois a capacidade de adaptação às novas circunstâncias varia na
proporção direta da renda, do local de residência, do tipo de atividade e mesmo
da cor da pele. Algumas brechas ampliadas na pandemia —como vem ocorrendo com o
ensino básico— terão efeitos a perder de vista e difícil reparação.
Desastres sociais deste porte costumam
abrir espaço para lideranças políticas prontas a explorar o mal-estar difuso
para concentrar poder pessoal. É o caso de alguns dos populismos
contemporâneos. Não está claro que será esse o destino do país. Ao populista do
Planalto faltam interesse pelos assuntos de governo e discernimento para
escolher colaboradores com sentido de realidade. Até o mais vocacionado dos
autocratas precisa fazer mais do que promover desfiles de motos aos domingos,
aglomerar fanáticos, tuitar contra seus inimigos e esperar que Deus o ajude a
acabar com a pandemia.
*Professora titular aposentada de ciência
política da USP e pesquisadora do Cebrap.
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