- Folha de S. Paulo
Honra do Exército brasileiro não resiste
sequer ao canto de um descerebrado
Numa passagem
da “Odisseia”, de Homero, conhecida como “Ulisses e as
Sereias”, o herói, navegando de volta para casa depois da guerra,
recebe conselho de uma feiticeira. Ela lhe sugere não ouvir o canto das
sereias, cujo feitiço faz os homens perderem o senso e se jogarem à morte.
Ulisses manda seus marinheiros taparem seus
ouvidos com cera e lhe amarrarem ao mastro para que só ele possa ouvir, mas não
caia no encanto. “Se eu implorar para que me libertem, devem me amarrar com
mais força.” Num momento de serenidade, sabendo do risco e da fragilidade da
razão, estabeleceu para si limites a sua liberdade num evento futuro
específico. (Busque as pinturas que representam essa história.)
A imagem do
“Pacto de Ulisses” serviu de metáfora para explicar e justificar certas
instituições jurídicas e políticas. Elucida, por exemplo, o
espírito do constitucionalismo e o papel de constituições: amarrar a democracia
ao mastro que segure as paixões majoritárias, a taquicardia, as emoções
primárias, os instintos primitivos. Às vezes, menos liberdade é mais. Assim é a
liberdade constitucional. (Leia Jon Elster sobre Ulisses e autocontenção.)
Ajuda também a entender instituições
comprometidas com a imparcialidade, que precisam pairar, tanto quanto possível,
acima do conflito entre governo e oposição, maiorias e minorias, aliados e
adversários. Precisam se despolitizar, permanecer despolitizadas e se proteger
das tentações.
Fazer instituições de Estado funcionarem como instituições de Estado é a maior operação republicana numa democracia. É uma façanha, uma busca permanente e falível. Portanto, uma conquista provisória, nunca definitiva. Atinge-se em graus, não na exata perfeição. São imprescindíveis regras constitucionais que tracem a arquitetura dessas instituições e mecanismos de controle ético e jurídico de seus agentes.
Forças
Armadas, Poder Judiciário, Ministério Público, polícia, o Itamaraty
são exemplos mais evidentes. Não basta se proclamar instituição de Estado, é
necessário parecer instituição de Estado, pôr em prática seus princípios e
controlar violações. Sancionar, sobretudo, agentes que delinquem.
Tivemos o nosso Ulysses particular. Declarou ter “ódio e nojo da ditadura” e ajudou a escrever a Constituição mais democrática e liberal da história brasileira. Deixou escapar defeitos que as gerações seguintes ainda não foram capazes de consertar.
Entre os defeitos estão avenidas amplas
demais para que um presidente qualquer as capture e um autocrata qualquer as
imploda. A técnica politizadora de Bolsonaro envolve promessas de cargos
futuros, favores orçamentários e até autorização para matar em troca de
servilismo e leniência. Sem contar os incentivos para que agentes de Estado
usem de sua instituição como trampolim para carreira eleitoral (sem regras
rigorosas de quarentena).
Na odisseia
bolsonarista, um mito tosco e letal convida instituições de Estado a se
corromperem impunemente. Tão ciosas de sua própria honra,
vendem-se por qualquer teto duplex (truque que rompeu o teto constitucional e
quase dobrou salário de membros da família militar, como Heleno, Braga Netto,
Ramos e Bolsonaro). A cooptação pelo bolso se vê em aumentos desmedidos de
remunerações, gratificações e orçamento.
O Sereio brasileiro tem seus generais, sua
polícia, seu procurador-geral, seu advogado-geral, seu ministro da Saúde e
gabinete paralelo da saúde na pandemia. Não hesitam em seguir caprichos do
presidente, pouco importam a orientação legal, as normas de decoro, o sentido
da política pública e recomendações da ciência. O descolamento entre o pessoal
e o institucional tornou-se impossível.
Pazuello, esse antiépico, não se amarrou ao
mastro. Beijou o Sereio e se amarrou na moto para passear pela orla
carioca. Mentiu na
CPI, subiu no palanque e violou a ética militar com estilo e espalhafato. Pode
ser “punido” com a reserva. Pazuello e a instituição que encarna, as Forças
Armadas brasileiras, seguem juntos na garupa de sua ninfa repugnante. Não sem
antes mandar a feiticeira para o porão.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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