- O Globo
Ou o Brasil acaba com a reeleição, ou a
reeleição acaba com o Brasil. Cada época tem a saúva que lhe cabe
Lula e Fernando Henrique, de máscara,
trocando soquinho: a imagem tem muitas camadas, permite várias leituras e com
certeza vai ser usada para ilustrar os livros de História sobre o período de
trevas que atravessamos — mas a minha primeira impressão, ao vê-la, foi de
desagrado. Ela me pareceu ser, mais do que um compromisso com o futuro, o
resumo do passado que nos trouxe até aqui.
Durante boa parte da sua vida pública Lula
espinafrou Fernando Henrique sem trégua. Hoje diz que as suas divergências eram
“políticas”, mas quem viveu a época e tem alguma memória ousa discordar.
Impeachment. Fora FHC. Fascistas. Herança
maldita.
A decadência do PSDB começou quando não
soube (e não quis) defender o legado de FHC e impor-se como oposição — e é a
essa complacência equivocada que a foto remete.
Para representar uma verdadeira frente
ampla, precisaria ter mais personagens: nela figura um só candidato à
presidência.
Com quem a foto pretende dialogar? Para o PT ela é um trunfo (o ex-ministro Celso Amorim a definiu como “transcendental”) — lá está o seu candidato com aquele que designou, ao longo de tantos anos, como seu principal inimigo; a questão é que, até por questão de estilo, FHC nunca assumiu esse papel. Lula sempre manifestou horror a Fernando Henrique e seus eleitores. O inverso não aconteceu.
A mensagem “Unidos contra Bolsonaro” é
importante? Sim, claro — mas para quem? Para os apoiadores de Bolsonaro, não
faz nenhuma diferença, pelo contrário: apenas reforça o mito do capitão contra
o sistema. E para quem percebe o tamanho do estrago, também não: é óbvio que
estão juntos contra Bolsonaro. Quem não está? A questão não é política, é
moral. Não há o que discutir entre civilização e barbárie.
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Por falar em “herança maldita”: Lula tem
razão, mas não pelos motivos que alega (ou alegava). Fernando Henrique deixou
mesmo uma herança maldita, que contaminou toda a política brasileira e fez um
dano incalculável à nossa democracia. Chama-se reeleição.
Desde que conseguiu comprá-la, não tivemos
mais um único administrador, em qualquer nível, que se dedicasse plenamente ao
ofício que é pago para exercer. Assim que sentam a derrière em suas cadeiras,
nossas autoridades passam imediatamente a trabalhar em função da reeleição.
Ou o Brasil acaba com a reeleição, ou a
reeleição acaba com o Brasil.
Sério.
Cada época tem a saúva que lhe cabe.
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O prefeito Eduardo Paes ganha muitos pontos
dos cariocas apenas por não ser o seu antecessor, mas não precisa exagerar no
cinismo, como fez anteontem ao dizer que uma eventual multa a Bolsonaro por ter
desrespeitado o decreto que obriga o uso de máscaras teria que ser “avaliada
pelo povo”: “O presidente é a principal autoridade do Brasil. Ele vai ser
sempre bem-vindo no Rio de Janeiro, e nós não vamos ficar nesse joguinho de
multa, né? O presidente tem essa responsabilidade, ele pode avaliar.”
Ora, não nos faça de idiotas, Eduardo Paes!
Excludente de ilicitude para uso de máscara a essa altura da pandemia? E desde
quando esse presidente tem responsabilidade, e onde consegue avaliar o que quer
que seja?!
Tenha vergonha, homem. Francamente.
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