- O Globo
Parece coisa do Brasil da ditadura, mas
aconteceu no Brasil de 2021. O servidor federal de carreira e sociólogo Celso
Rocha de Barros foi convocado a depor pela Polícia do Senado por ter escrito um
artigo criticando senadores que defendem o governo na CPI da Covid. Essa foi a
parte da notícia que chegou aos jornais. O que não se sabia até hoje é que a
truculência foi além.
Num dia da semana passada, o telefone tocou
na casa de um parente dele. Na ligação, um policial do Senado “sugeriu”: se ele
apresentasse um pedido de desculpas por escrito, talvez desse para evitar as
consequências legais do que publicara. Em sua coluna na “Folha de S.Paulo”,
Rocha de Barros disse que os senadores Eduardo Girão (Podemos-CE) e Luis Carlos
Heinze (PP-RS) buscam tumultuar a CPI mentindo sobre medicina e cloroquina, formando um
“consultório do crime” a favor de Bolsonaro.
Dias antes, foi o professor da Universidade de São Paulo (USP) Conrado Hübner Mendes que se surpreendeu com a represália a um artigo seu, também publicado na “Folha”. O professor, que costuma se referir ao procurador-geral da República, Augusto Aras, como “poste-geral da República” em suas redes sociais, escreveu que o PGR, que tem como função fiscalizar e investigar as condutas do presidente, é omisso e trabalha o tempo todo para impedir que se apurem as condutas de Bolsonaro na pandemia. Aras não gostou e entrou com uma queixa-crime na Justiça e com uma representação na USP, pedindo que o conselho de ética julgasse o comportamento do professor Mendes.
São os casos mais recentes, mas não
isolados. Desde 2019, a Lei de Segurança Nacional — criada pela ditadura para
coibir atentados à segurança e à soberania nacional — já foi usada para
justificar a abertura de 77 investigações, bem mais que as 44 dos quatro anos
anteriores. Pelo menos 12 foram abertas a pedido do próprio Ministério da
Justiça, contra políticos e jornalistas que manifestaram críticas a Bolsonaro.
O próprio Aras já processou criminalmente
outro jornalista que o criticou por ser leniente com o governo de Bolsonaro.
Até agora, não ganhou. E a vitória deve ficar ainda mais difícil depois que o
próprio ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes mandou
realizar uma operação de combate à corrupção no Ministério do Meio
Ambiente sem comunicar a Aras. Por confiar na combatividade da PGR
para investigar o governo é que não foi.
A Constituição brasileira tem dois artigos
que garantem a liberdade de expressão, de imprensa, de crença e de convicção
política, mas os senadores e o poste, ops, o procurador-geral da República, se
julgam acima da lei. Evocam respeito a suas autoridades e às instituições que
representam, mas esquecem que, quando se dispuseram a exercer funções públicas,
sendo remunerados com dinheiro público, (supostamente) para servir ao público,
colocaram-se voluntariamente sob o escrutínio… público.
A eles é dado, como a todo cidadão, o
direito à reparação e à indenização por calúnia e difamação na esfera cível.
Mas, pelo menos até agora, não lhes é dado impedir que outros cidadãos lhes
façam críticas, mesmo que ácidas ou supostamente injustas.
Até onde se sabe, não voltamos (ainda) aos
tempos da ditadura, quando professores universitários sofriam processos
bizarros e eram afastados de seus cargos por razões políticas, e intelectuais
recebiam ameaças veladas por suas opiniões e textos em telefonemas anônimos.
Por enquanto, ainda é possível que 88
professores da USP subscrevam as críticas do professor Hübner Mendes num
manifesto intitulado “Poste, Servo, Omisso” sem sofrer maiores consequências.
Ainda não aconteceu nada ao sociólogo Rocha de Barros, que se recusou a prestar
depoimento numa investigação que a Polícia do Senado não tem poder para
realizar. E está claro que ainda há, felizmente, muita gente disposta a
batalhar pela saúde da democracia brasileira.
Mas é uma lástima que os mesmos que se
dizem preocupados com a imagem de instituições tão importantes para a República
como o Senado ou o Ministério Público não se mostrem igualmente empenhados em
impedir a disseminação de mentiras sobre remédios sem eficácia para o tratamento da Covid-19. Que não
se importem com a esculhambação patrocinada por um governante que promove
aglomerações em meio a uma pandemia mortal. Ou que finjam não ver quando o
presidente da República ameaça “dar porrada” em jornalistas ou adversários
políticos. Para esses, só tem direitos quem tem poder. É gente que age como na
ditadura, mas no Brasil de 2021.
Atualização as 8h44m - A pessoa que ligou para a casa da família de Rocha de Barros se identificou como policial do Senado. O texto foi corrigido na versão online
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