- O Globo / O Estado de S. Paulo
Há um debate rolando na Índia que tem muito
interesse para o Brasil. Lá, Ravi Shankar Prasad, ministro da Lei, Informação e
Tecnologia, propôs em fevereiro regular as redes sociais. Segundo a nova
legislação, o governo estaria apto a ordenar a retirada do conteúdo que
considerar ilegal. Dentre as medidas, apps de mensagens como o WhatsApp seriam
também obrigados a traçar o caminho daquilo que circula. Se o governo não
gostar de algo, terá como descobrir quem enviou. Pois o WhatsApp, em geral
discreto na relação com governos por onde anda, reagiu com dureza. Recorreu à
Suprema Corte do país.
Um pouco de contexto ajuda. O premiê
indiano, Narendra Modi, faz parte da onda mundial de governantes populistas e
autoritários que incluem o húngaro Viktor Orbán, o americano Donald Trump e,
naturalmente, o brasileiro Jair Bolsonaro. Modi tem mais proximidade com outro
ilustre membro do conjunto, o turco Recep Tayyip Erdogan. Para os dois, é menos
uma visão nacionalista de extrema-direita que os guia, embora ambos sejam de
direita e nacionalistas. A força motriz de seu populismo é religiosa, e seus
principais adversários não são o naco democrático dos liberais e progressistas.
Seu alvo principal são as minorias religiosas. A diferença é cosmética, pois a
ação política é similar. Fortes doses de autoritarismo, desinformação pelos
meios digitais e uma contínua ação de degradação institucional. Corroem as
democracias por dentro.
Não é à toa, portanto, que exista na Índia um ministro responsável simultaneamente pela Lei, pela Informação e pela Tecnologia. Quebrar o espírito das leis, controlar informação, tudo pela tecnologia, é a fórmula do decaimento democrático.
Também existe, no debate brasileiro, uma
proposta de lei que exigiria do WhatsApp permitir rastrear a origem das mensagens.
As intenções são muito distintas das indianas. Para começar, aqui nasce de quem
está preocupado com desinformação e deseja punir os grupos políticos que
injetam mentiras e distorções no ecossistema que informa a população. O
objetivo é combater o dano à democracia.
Lá é diferente. Na corrosão democrática, o
governo vai mesmo é atrás de quem circula informação que não lhe interessa. É
uma ameaça à oposição legítima.
Esse, evidentemente, é um paradoxo. O
argumento do WhatsApp para manter completo anonimato sobre quem envia o quê —
nem a empresa tem como saber — é justamente a proteção de quem busca democracia
em ambientes autoritários. Um dos dois fundadores da empresa, Jan Koum, é um
ucraniano que nasceu na União Soviética e sabe o que regimes ditatoriais fazem
com quem discorda. A proteção, porém, serve às avessas quando o Zap é arma para
desmontar o livre debate que sustenta democracias.
Na proposta que alguns da sociedade civil
brasileira fizeram, a decisão não é governamental. É a Justiça, e apenas ela,
que poderia solicitar à empresa algum tipo de informação sobre origem. Na
Índia, Modi já tem controle sobre a Justiça. Num segundo mandato, Jair
Bolsonaro poderia terminar controlando quase metade do Supremo. Nada é simples.
De qualquer forma, um ponto é preciso
destacar: o argumento do WhatsApp, no Brasil, é que a mudança que permitiria
rastrear a origem não é tecnicamente possível. Seria preciso reescrever todo o
software, coisa que não faria para um só país. Jogo jogado. Na Índia, o
argumento usado é outro. Apelou à Corte argumentando que a iniciativa é
inconstitucional.
No mês passado, o governo indiano ordenou a Facebook, Instagram e Twitter que derrubassem inúmeros posts críticos à política de combate à pandemia da administração Modi. Seriam, alegaram, desinformação.
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