sexta-feira, 28 de maio de 2021

Pedro Doria - O paradoxo do WhatsApp

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Há um debate rolando na Índia que tem muito interesse para o Brasil. Lá, Ravi Shankar Prasad, ministro da Lei, Informação e Tecnologia, propôs em fevereiro regular as redes sociais. Segundo a nova legislação, o governo estaria apto a ordenar a retirada do conteúdo que considerar ilegal. Dentre as medidas, apps de mensagens como o WhatsApp seriam também obrigados a traçar o caminho daquilo que circula. Se o governo não gostar de algo, terá como descobrir quem enviou. Pois o WhatsApp, em geral discreto na relação com governos por onde anda, reagiu com dureza. Recorreu à Suprema Corte do país.

Um pouco de contexto ajuda. O premiê indiano, Narendra Modi, faz parte da onda mundial de governantes populistas e autoritários que incluem o húngaro Viktor Orbán, o americano Donald Trump e, naturalmente, o brasileiro Jair Bolsonaro. Modi tem mais proximidade com outro ilustre membro do conjunto, o turco Recep Tayyip Erdogan. Para os dois, é menos uma visão nacionalista de extrema-direita que os guia, embora ambos sejam de direita e nacionalistas. A força motriz de seu populismo é religiosa, e seus principais adversários não são o naco democrático dos liberais e progressistas. Seu alvo principal são as minorias religiosas. A diferença é cosmética, pois a ação política é similar. Fortes doses de autoritarismo, desinformação pelos meios digitais e uma contínua ação de degradação institucional. Corroem as democracias por dentro.

Não é à toa, portanto, que exista na Índia um ministro responsável simultaneamente pela Lei, pela Informação e pela Tecnologia. Quebrar o espírito das leis, controlar informação, tudo pela tecnologia, é a fórmula do decaimento democrático.

Também existe, no debate brasileiro, uma proposta de lei que exigiria do WhatsApp permitir rastrear a origem das mensagens. As intenções são muito distintas das indianas. Para começar, aqui nasce de quem está preocupado com desinformação e deseja punir os grupos políticos que injetam mentiras e distorções no ecossistema que informa a população. O objetivo é combater o dano à democracia.

Lá é diferente. Na corrosão democrática, o governo vai mesmo é atrás de quem circula informação que não lhe interessa. É uma ameaça à oposição legítima.

Esse, evidentemente, é um paradoxo. O argumento do WhatsApp para manter completo anonimato sobre quem envia o quê — nem a empresa tem como saber — é justamente a proteção de quem busca democracia em ambientes autoritários. Um dos dois fundadores da empresa, Jan Koum, é um ucraniano que nasceu na União Soviética e sabe o que regimes ditatoriais fazem com quem discorda. A proteção, porém, serve às avessas quando o Zap é arma para desmontar o livre debate que sustenta democracias.

Na proposta que alguns da sociedade civil brasileira fizeram, a decisão não é governamental. É a Justiça, e apenas ela, que poderia solicitar à empresa algum tipo de informação sobre origem. Na Índia, Modi já tem controle sobre a Justiça. Num segundo mandato, Jair Bolsonaro poderia terminar controlando quase metade do Supremo. Nada é simples.

De qualquer forma, um ponto é preciso destacar: o argumento do WhatsApp, no Brasil, é que a mudança que permitiria rastrear a origem não é tecnicamente possível. Seria preciso reescrever todo o software, coisa que não faria para um só país. Jogo jogado. Na Índia, o argumento usado é outro. Apelou à Corte argumentando que a iniciativa é inconstitucional.

No mês passado, o governo indiano ordenou a Facebook, Instagram e Twitter que derrubassem inúmeros posts críticos à política de combate à pandemia da administração Modi. Seriam, alegaram, desinformação.

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