Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Irresponsabilidade é um método de ação
política para todo bolsonarismo
Os governos democráticos, por definição,
devem responder ao público e assumir as responsabilidades pelos atos
governamentais, por meio de informações fidedignas que possam ser acessadas de
forma transparente e que sirvam para a fiscalização da sociedade e de
instituições públicas independentes. Há na língua inglesa um termo para esse
processo: “accountability”, cuja tradução mais usada no Brasil tem sido
responsabilização, porque, além da prestação de contas, espera-se que os
governantes sejam responsabilizáveis por suas políticas públicas. Dito isto,
pode-se dizer que a irresponsabilidade é a marca do presidente Bolsonaro,
tornando-se um método de ação política para todo o bolsonarismo.
Cabe lembrar que a “accountability” foi
rara ao longo da história brasileira porque a democracia demorou para florescer
nestas terras. Somente com a Constituição de 1988 é que os governantes se viram
obrigados a responder constantemente ao público. Comparado ao que ocorrera em
toda a trajetória republicana do país, houve muitos avanços, de modo que os
governos se tornaram mais abertos ao escrutínio público.
Evidentemente é preciso aperfeiçoar vários dos instrumentos de responsabilização do poder público, fazendo da “accountability” um processo marcado mais pela cobrança do que fora efetivamente feito pelos governantes e menos um objeto de vingança política ou de tentativa de substituir os eleitos por não eleitos que se acham salvadores da pátria. Só que os ajustes devem servir para continuar na trilha de maior fiscalização governamental, e não para reduzir os controles democráticos sobre os governantes.
O governo Bolsonaro é um corte profundo no
processo de aumento da responsabilização dos governantes brasileiros. Não
apenas porque seu desejo é não ser fiscalizado ou controlado pela sociedade e
pelas instituições públicas. O bolsonarismo tem uma sede incomensurável pelo
poder, mas sua peculiaridade maior é ter criado um método que busca a
legitimidade pela irresponsabilidade.
Em outras palavras, ser irresponsável não é
apenas uma maneira de evitar ser controlado para concentrar poder. Soma-se a
esse desejo de ser “unaccountable” o ponto central do bolsonarismo: o uso de
verdades alternativas como forma de manter seu exército de apoiadores e
enfraquecer o sistema de controles. O fato é que Bolsonaro não quer apenas ser
poupado do dever de responder ao público pelos atos de seu governo; mais do que
isso, ele quer subverter toda a lógica que sustenta a democracia contemporânea.
A expressão verdades alternativas advém
aqui dos “alternative facts” inventados pelo trumpismo e seus ideólogos. O
objetivo desse conceito é contrapor-se à lógica do “sistema”, tratado como um
“conluio contra o povo”, e criar um modo paralelo de exercer o poder. Para
instaurar esse método de irresponsabilidade como forma de governar e de
legitimar suas ações políticas, o movimento bolsonarista utiliza cinco
instrumentos: o uso constante da mentira pública, a comunicação maciça nas
redes sociais em torno de mitos e confusões, o repasse da culpa de todos os
problemas a terceiros, a criação de um governo guiado pela intransparência e,
por fim, ações deliberadas para enfraquecer ou mesmo inviabilizar os controles
democráticos.
A primeira característica da lógica das
verdades alternativas é mentir descaradamente, mesmo quando fatos, documentos
ou números desmentem o que foi exposto por membros do governo. No fundo, o
bolsonarismo usa uma estratégia política: afirma que tudo que é contraposto às
suas falas deriva de visões deturpadas produzidas pela mídia, por políticos que
discordam do governo, pela ciência, por juízes e por todos aqueles que
representariam uma elite que esconde a “verdadeira verdade” (vi esse termo numa
rede social bolsonarista). Por meio desse método discursivo, o que importa não
é o conteúdo que foi dito, mas quem disse.
Seguindo essa lógica da mentira descarada,
bolsonaristas puderam negar o verdadeiro tamanho do número de mortos pela
pandemia e, ancorando-se nisso, invadir hospitais para ver se havia mesmo um
contingente grande de pacientes. Por essa mesma toada o ex-ministro Pazuello
pôde mentir sobre vários fatos vinculados à sua gestão e aparecer como um herói
nas redes bolsonaristas. O uso da mentira tem como suporte fontes de informação
não oficial e a utilização sistemática de sofismas, como demonstra bem o caso
da defesa da cloroquina pelo presidente Bolsonaro e sua trupe. Afinal, se
alguns médicos, mesmo sem embasamento científico, defendem o uso desse remédio
com fins preventivos contra a covid-19, isso se justifica como argumento contra
a comunidade científica e a necessidade de comprovação robusta que a ciência
exige. Isto porque, para os bolsonaristas, os acadêmicos e a Organização
Mundial da Saúde (OMS) estão a serviço do “establishment” e do globalismo, de
modo que o discurso deles é, por definição do sujeito que fala, ilegítimo e
falso.
O uso da mentira repetida só consegue ter
poder de legitimação política se acompanhada por forte comunicação dirigida ao
público mais suscetível à lógica bolsonarista. Trata-se da segunda
característica do método das verdades alternativas: utilizar as redes sociais,
de forma avassaladora (inclusive com milhares de robôs), para disseminar mitos
sobre os fatos e confundir o debate público. Com muita sagacidade política, o
bolsonarismo segue a máxima de Chacrinha, um gênio da comunicação de massa, que
dizia: “eu não vim aqui para explicar, eu vim para confundir”. Assim, são
criadas versões, às vezes estapafúrdias, para rebater todas as críticas
recebidas pelo governo, e quando existe um movimento maior na sociedade que
discorda da posição governamental, novos assuntos aparecem como os “verdadeiros
problemas do país”, para desse modo mudar o eixo do debate público.
A tática de espalhar mitos e confusões pela
via das redes sociais, alimentadas cada vez mais por atos públicos comandados
pelo presidente Bolsonaro, constitui uma forma eficaz de rebater discursos e
fatos divulgados amplamente pela mídia tradicional, gerando argumentos para que
os seguidores do bolsonarismo possam defender uma verdade alternativa. Só que,
como a mídia continua a criticar o governo, gera-se a necessidade de lançar mão
de um terceiro instrumento: nunca admitir a responsabilidade por nenhum
problema e, ademais, terceirizar a culpa.
No caso do combate à covid-19, essa foi uma
das estratégias dominantes. Conforme este argumento, o governo federal não é
responsável por nada e tudo esteve nas mãos de governadores e prefeitos,
culpados pelo fechamento da economia e pela corrupção no plano subnacional.
Jogar a batata quente para os Estados e municípios é uma forma de se esquecer
que o modelo de clientelismo desbragado que orienta o casamento de Bolsonaro
com o Centrão é uma das principais alavancas das irregularidades
administrativas locais com dinheiro federal.
O repasse da culpa para os outros é o
argumento que vai sustentar a defesa do governo na CPI. Perguntado sobre o caos
humanitário que aconteceu em Manaus, o ex-ministro Pazuello tentou, com base em
mentiras, incriminar os agentes públicos locais pela falta de oxigênio e
remédios aos doentes que morreram de forma trágica. Na versão mais grotesca
dessa desresponsabilização governamental, está a célebre frase de Bolsonaro
sobre o crescimento dos óbitos: “eu não sou coveiro” - aqui, ele estava
transferindo a culpa para o vírus, o verdadeiro carrasco do país.
Mesmo evitando ser responsabilizado por
qualquer dificuldade ou erro governamental, dados sobre decisões e ações
oficiais podem desmontar essa estratégia, como está se vendo no caso do atraso
da compra das vacinas. Por isso, é necessário usar um quarto instrumento:
aumentar a intransparência sobre as informações do governo Bolsonaro. Vários
dados sobre políticas públicas que foram construídos com muita luta nos últimos
30 anos estão sendo agora destruídos. A criação de um orçamento secreto, com cerca
de R$ 3 bilhões, é um ato contra a ideia de que o governo democrático deve
estar aberto ao controle e escrutínio social. Quanto mais difícil for saber o
que efetivamente fizeram o presidente e seus ministros, mais fácil será
implementar a lógica das verdades alternativas.
Sobra um último obstáculo contra a
estratégia bolsonarista: as instituições incumbidas do controle dos
governantes. Por isso, Bolsonaro tem gasto boa parte de seu poder político para
enfraquecer a autonomia da burocracia de carreira - como o Ibama ou as Forças
Armadas -, o Ministério Público, a Polícia Federal, o Congresso, o TCU e, quem
sabe, como principal sonho, o STF. Tem havido resistências e derrotas para o
bolsonarismo em algumas dessas frentes, mas não se pode dizer que a democracia
esteja funcionando plenamente no seu modo normal, pois os resultados da
política ambiental e de saúde revelam claramente como a falta de fiscalização
independente colocou o país numa situação trágica de destruição da natureza e
de milhares de mortes.
É possível lutar contra lógica das verdades
alternativas e evitar a irresponsabilidade como método de governo adotado pelo
bolsonarismo? Esse é o desafio que deveria unir todos aqueles que são
favoráveis à “accountability” como coração da governança democrática do país.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas,
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