- Valor Econômico
“Voto auditável” é armadilha para contestar
eleições
A discussão hoje da impressão do voto, como
instrumento para auditar a urna eletrônica, está muito longe de ser apenas uma
ideia ruim, como era antes. A proposta impulsionada pela ala bolsonarista do
PSL, com a adesão de uma ou outra liderança de esquerda e abençoada pelo
presidente da Câmara, Arthur Lira, tornou-se agora a maior ameaça potencial ao
sistema democrático no país.
O que a Câmara está discutindo não é a
volta do voto em cédula. Se fosse isso, seria um retrocesso, mas ainda assim
muito melhor do que o que está posto em debate. O voto em cédula é um mecanismo
de consulta popular altamente vulnerável a fraudes, mas que, com amadurecimento
institucional e o desenvolvimento de ferramenta de controles, é aceito em
diversas partes do mundo.
A emenda constitucional em discussão prevê a instalação de uma impressora acoplada à urna eletrônica que, em tese, permitiria ao eleitor conferir se o seu voto está sendo computado corretamente. Em seguida, o papel seria picotado e cairia automaticamente em um recipiente. O mecanismo permitiria que uma seção eleitoral fosse auditada. Se a sistematização dos votos na urna eleitoral for diferente dos votos impressos no recipiente físico, estaria visualizado o buraco na armadura.
Não é preciso muito esforço para
desconstruir essa ideia. O sistema para auditar o voto com a impressão
significa o seguinte: o modelo mais seguro, que é o que está blindado contra
qualquer interferência humana e em relação ao qual nunca houve evidência de
fraude, passaria a ser controlado pelo modelo menos seguro.
Em uma “live” do site “Jota”, a deputada
Margarete Coelho (PP-PI) sintetizou o perigo: “Onde estes recibos da votação
vão ser armazenados? Vão todos para um galpão? Quem vai manuseá-los? De que
forma? Basta sumir uma impressão, uma única que seja, acabou a eleição.
Processo eleitoral é jogo de poder, e o jogo do poder é bruto”, sintetizou. O
histórico das eleições no Brasil dispensa comentários sobre a probabilidade de
alguma força política manipular os recibos para melar todo o processo.
Para o advogado Diogo Rais, professor de
direito eleitoral da Universidade Mackenzie, talvez essa seja a ideia: arrumar
um mecanismo para impugnar as eleições. “Fabrica-se uma atmosfera de incerteza
e insegurança para deslegitimar a eleição”, comentou. Seria a reedição
aperfeiçoada da canhestra tentativa de Donald Trump de levar no grito a eleição
de 2016 nos Estados Unidos.
A impressão do voto seria, portanto, uma
espécie de cavalo de Troia. Para fraudar o sistema eletrônico é necessária uma
operação de terrorismo cibernético. Para fraudar a votação impressa, os
descaminhos já são bem conhecidos e consagrados pelo uso.
Propostas de voto impresso já foram
aprovadas pelo Congresso anteriormente, é razoável supor que a emenda que prevê
este instrumento conte com boas chances de aprovação no Legislativo. Se isso
acontecer, há crise institucional pela frente.
O Tribunal Superior Eleitoral estará sob a
presidência do ministro Luís Roberto Barroso até março do próximo ano. Por
alguns meses, a corte será presidida por Edson Fachin. E em setembro assume o
TSE o ministro Alexandre Moraes.
Barroso, Fachin e Moraes têm traços em
comum: não se intimidam em entrar em confrontos com outros Poderes, se
entenderem necessário.
Rais aponta que há um caminho para se
aplicar o mecanismo de cláusula pétrea em relação ao sistema de voto
brasileiro.
O artigo 60 da Constituição, em seu
parágrafo 4º, inciso II, estabelece o seguinte: não pode ser objeto de
deliberação a proposta de emenda tendente a abolir “o voto direto, secreto,
universal e periódico”. A menção ao sigilo do voto é uma brecha que se abre,
portanto, para se considerar que a impressão viola um princípio imutável na
Constituição. Por que a partir da criação de um registro por escrito do que se
fez na cabine indevassável, pode-se argumentar que o dispositivo está sendo
desrespeitado. Não é inédita a situação do Supremo Tribunal Federal, que atua
em sintonia com o TSE, declarar inconstitucional uma emenda constitucional.
Haverá uma crise contratada com o
Judiciário. Não será a única: certamente será judicializado o decreto que o
presidente Bolsonaro estuda assinar regulamentando o marco civil da Internet, a
se confirmar o teor já vazado em minutas que circularam por Brasília. Em
síntese, o decreto irá concentrar o controle de moderação de conteúdo na
internet para o Estado, o que é um disparate. Se os dois movimentos cursarem de
modo simultâneo, a turbulência no processo eleitoral será certa.
CPI
A CPI da Covid é a primeira transmitida
simultaneamen- te por TV e “streaming” em muitas de suas sessões. É uma CPI que
pegou, atraiu a opinião popular, está sendo acompanhada por pessoas que não são
aficcionadas por política. Compreende-se agora porque o governo temia sua
instalação. Não há como evitar o desgaste da imagem presidencial. Desconte-se o
depoente que lá esteve disposto a atacar o governo, no caso Mandetta, ou os que
por mentiras, omissões e manobras evasivas tentaram defendê-lo, como Pazuello,
Wajngarten, Mayra Pinheiro e Marcelo Queiroga.
Calaram mais fundo nos espectadores comuns
os depoimentos de caráter mais técnico, como o do representante da Pfizer, o do
presidente da Anvisa e por último, ontem, o do diretor do Butantan. São
depoentes que aparentam estar fora do jogo político e que, carregados de
credibilidade, deixam claro que o governo federal não tomou decisões por
critérios científicos e, no mínimo, foi negligente na questão das vacinas.
Uma CPI com essas características produz
suas celebridades. O senador Marcos Rogério exerce protagonismo na tropa de
choque de governo. Incisivo nos depoimentos, articulado, deve ganhar pontos
entre os aliados incondicionais do presidente. O gaúcho Luis Carlos Heinze é o
grande reciclador de narrativas duvidosas com trânsito nas redes sociais. Pode
se fortalecer na extrema-direita negacionista. O carnaval da tropa de choque em
torno da cloroquina tem seu propósito: exorciza a desídia do presidente contra
a pandemia. Ao se apresentar a cloroquina como uma tentativa válida, significa
que ao menos Bolsonaro tentou.
No outro espectro, ganham destaque Otto
Alencar, sempre hábil em explorar a sua formação em medicina e Omar Aziz, que
aparenta dureza mesmo quando cede à pressão dos governistas.
O que não se pode esperar é o que essa CPI não tem como entregar. Não há, ali, elementos que permitam antever dificuldades para Bolsonaro permanecer no poder.
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