O Globo
Na Petrópolis devastada, ainda são contadas
as centenas de mortes. Todos querem que as águas de março fechem logo este
verão trágico. No país decomposto, março leva ao moinho da baixa política a
água suja da “janela da troca de partido”.
Trata-se da licença para mudar de legenda
sem nenhum constrangimento legal ou político. A lei da “fidelidade partidária”
fica provisoriamente suspensa, e ninguém precisa justificar descumprimento do
programa, perseguição da cúpula ou qualquer outra razão para bater noutra porta
política.
É como nas janelas de transferência do
futebol profissional, com período definido e altas somas envolvidas. Com o
fundão partidário — R$ 939 milhões em 2021 — e eleitoral — R$ 4,9 bi para a
campanha deste ano —, quanto estará custando o passe de um parlamentar ou de
uma celebridade com densidade de votos?
Na degeneração partidária que assola o país, princípios, doutrina e programa não têm vez na maioria das agremiações. As marcas de fantasia — insossa sopa de letrinhas — são enganosas: progressista pode ser atrasado; liberal, conservador; democrata, autoritário; popular, elitista; trabalhista, patronal; ecológico, poluidor; socialista, capitalista...
Em 1932, Osvaldo Aranha (1894-1960) cunhou
frase célebre: “O Brasil é um deserto de homens e ideias”. Passado tanto tempo,
homens não faltam. Mas avultam o personalismo, os outsiders, as lideranças
autorreferenciadas. Poderosos atores políticos perdem a nitidez ideológica e o
pudor: o chefão do PSD inclina-se a cada semana por um pré-candidato
presidencial; um tucano sai do ninho e, cogitado para vice, não sabe para que
partido vai; o vice-presidente da República escanteado define o estado em que
disputará o Senado, mas não o partido; uma ministra diz, sem inibições, que
gostaria de disputar uma cadeira na Câmara Alta por seis estados e de “ter seis
estruturas de gabinete”. Um jovem governador perde a prévia em seu partido e
busca outro; um ex-juiz nega a “política”, mas nela se lambuza, de decisões
parciais a assunção a ministério e pré-candidatura lastreada sobretudo em... si
mesmo. Fala-se muito nos polos, mas só há um extremo, com pendores
neofascistas. Procuram-se as ideias.
Partidos como sujeitos coletivos, onde se
pratica a saudável divergência para chegar a consensos, são indispensáveis.
Precisam ganhar potência. Mas as bancadas nos parlamentos costumam ser
aglomerados de “personalidades” vaidosas, preocupadas sobretudo com suas
próprias carreiras. O inimigo mortal de ontem vira o aliado de hoje. Por tudo
isso, os partidos — com raras exceções — não têm liderança social e
institucional, indispensáveis à democracia. Incrustados no aparato estatal,
perdem a conexão com a sociedade. Tornam-se veículos de captação de votos em
notáveis (ou notórios) figurões políticos. A pequena e velha política, do
fisiologismo, consolida-se como a grande, quase única, que o Centrão representa
de forma inequívoca.
O Brasil, para sair do atoleiro, da
asfixia, da apatia, precisa mais de cidadania que de “estadania”, esta em que o
aparelho burocrático do Estado não é permeável às demandas vivas da população.
Os partidos estão convocados a apresentar
seus projetos para o combate à desigualdade social e à miséria dela decorrente,
suas propostas de reformas tributária, urbana e agrária, suas iniciativas para
a transição energética, suas políticas de saúde, educação, cultura, habitação,
democratização da informação, mobilidade e cuidado ambiental. Emoldurando tudo
isso, sua concepção de democracia — aquela de alta intensidade, com
participação popular permanente, gestão transparente e combate permanente à
corrupção, agora oficializada na aberração que é o orçamento secreto.
Sem isso, “é pau, é pedra, é o fim do
caminho”. É a lama.
*Professor de História e vereador (PSOL) no Rio
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