Folha de S. Paulo
Gilberto Freyre enxergou traços da Rússia
entre nós
Gilberto Freyre enxergou traços da Rússia
entre nós quando se referiu ao Brasil como "essa Rússia Americana",
em "Casa Grande & Senzala" (1933), e mesmo antes. O foco de sua
análise são as relações de sadismo e gosto pelo mando resultantes da escravidão
e que perpassavam a vida brasileira, da esfera sexual à política, irradiando-se
"no gosto de mando violento ou perverso que explodia no senhor de engenho
ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de
administração pública".
E acrescentava "gosto que se encontra abrutalhado em rude autoritarismo num Floriano Peixoto". E conclui que o mandonismo tem sempre encontrado vítimas em quem exercer-se com "requintes sádicos, deixando até nostalgias logo transformadas em cultos cívicos, como o do Marechal de Ferro".
Em relação à psicologia política argumentou
que "o que o grosso do que se pode chamar ‘povo brasileiro’ ainda goza é a
pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático" (como
não lembrar de Putin?). A análise aqui é descritiva, não normativa; Freyre
vaticinou o homem forte que viria a inflamar a imaginação política no país sob
a ditadura do Estado Novo e sob a democracia populista.
Na "Rússia americana", conclui
"as expressões de mística revolucionária, de messianismo, de identificação
do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de liberdade
pessoal" se vê "menos a vontade de reformar ou corrigir vícios de
organização política que o puro gosto de ser vítima ou sacrificar-se".
Populismo, messianismo, vitimismo. Sim não
é à toa que a Rússia é o berço dos Narodniks (populistas), que inclusive deram origem à expressão populismo.
Rússia e Brasil eram monarquias com
territórios continentais tendo em comum as chagas da escravidão e da servidão
prolongadas. Mas o Brasil tinha liberdade de expressão e um monarca
"orgulhoso de sua tolerância" em relação à oposição, como afirmou
Joaquim Nabuco.
A divergência radical de trajetória
acentuou-se com a Revolução de 1917, e o totalitarismo resultante. Enquanto
isso, a República Velha foi um regime semicompetitivo. Tivemos as ditaduras de
Vargas e a Militar; mas, na República de 46, um regime multipartidário
competitivo surgiu e superou crises. Desde 1988, o regime assistiu a três
alternâncias de poder; na Rússia, não houve uma sequer alternância pacífica e
competitiva. .
Os traços essenciais do populismo nunca nos
abandonaram: narrativas contrapondo elites corrompidas e povo virtuoso; e líder
como expressão direta deste último, sem intermediários como partidos ou sem
estar limitados por instituições de controle ou separação de poderes.
Sim, no momento, uma Rússia palpita entre
nós.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
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