Folha de S. Paulo
Cancelar artistas russos é contraditório em
democracias liberais
Como forma de retaliação à invasão da Ucrânia, a cultura russa está sendo cancelada. Festivais de cinema na Europa, como o de Glasgow e o de Estocolmo, baniram filmes russos que receberam financiamento estatal. O teatro The Helix, em Dublin, cancelou um espetáculo da Companhia Real de Balé de Moscou, enquanto a Royal Opera House, em Londres, cancelou a temporada do Balé Bolshoi. Já na Itália, Dostoiévski, morto em 1881, sofreu ataques: uma universidade em Milão chegou a cancelar um curso sobre o escritor russo, mas, com a repercussão negativa, voltou atrás, e, em Florença, cidadãos pediram a derrubada de uma estátua em homenagem a ele.
Assim, democracias liberais agem a partir
do mesmo fundamento que criticam. Como combater um governo autoritário a partir
de censura? Lembra a contradição do macarthismo, quando o EUA, se arvorando a
defensor mundial da liberdade, perseguiu artistas que seriam comunistas. Ou
seja, não faz sentido algum defender a tolerância e a liberdade fomentando
preconceito e censura.
Em segundo lugar, temos o caso do
cancelamento de artistas que não se posicionaram explicitamente contra Putin
(como o maestro Valery Gergiev e a soprano Anna Netrebko). Ora, é muita
ingenuidade não considerar que, justamente por Rússia ter um governo autoritário,
o posicionamento de artistas russos pode gerar represálias aos familiares
desses artistas. No conforto da democracia liberal, talvez muitos estejam
ignorando como é viver sob o autoritarismo.
Por último, devemos considerar a
importância da separação entre a arte do artista e seu posicionamento político
pessoal. O valor de uma obra de arte está contido nela mesma, não em quem a
produziu. Mesmo considerando que, em período de guerra, tendemos à
passionalidade, manter essa separação em mente é importante para que não se
abra precedente. Afinal, governos mudam, perspectivas ideológicas também, e nunca
se sabe quem terá o poder de decidir qual é a perspectiva do mal. Pode ser a
nossa.
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