O Globo
O presidente afegão, Ashraf Ghani, fugiu do
país diante da aproximação das forças do Talibã. Volodymyr Zelensky, da
Ucrânia, permaneceu em Kiev, recusando a oferta dos EUA de transferir seu
governo para Lviv e inspirando a resistência nacional à invasão russa.
Analistas distraídos tiveram, então, de reconhecer a coragem do ex-comediante,
alvo fácil de suas zombarias.
Não é só coragem. Dirigindo-se ao povo
russo, em língua russa, Zelensky desmontou cada uma das mentiras difundidas
pelo Kremlin. O discurso precisaria ser ouvido no Brasil, onde não
faltam papagaios de Putin.
A invasão destina-se a libertar a nação invadida? “A Ucrânia, nas notícias de vocês, e a Ucrânia, na realidade, são dois países completamente diferentes. O mais importante é que a nossa é real.” A Ucrânia vive sob o nazismo? “Como pode uma nação ser qualificada como nazista depois de sacrificar 8 milhões de vidas para erradicar o nazismo? Como posso ser nazista se meu avô sobreviveu à guerra integrando a infantaria soviética e morreu como coronel numa Ucrânia independente?”, perguntou o ucraniano, que é judeu.
As indagações de Zelensky contêm reflexões
raras entre os estadistas políticos atuais: “Dizem a vocês que odiamos a
cultura russa. Mas como uma cultura pode ser odiada? Qualquer cultura?”.
Putin alega que a Ucrânia determinou
bombardeios sobre a região do Donbass. “Atirar em quem? Bombardear o quê?”
Zelensky registrou que tem amigos em Artema, que torceu pela seleção nacional
na Arena Donbass antes de lamentar a derrota em meio a cervejas no Parque
Scherbakova, que o melhor amigo de sua mãe vive em Luhansk. E vai ao ponto:
“Veja que falo em russo, mas ninguém na Rússia sabe o que significam esses
nomes, ruas e eventos. Tudo isso é estrangeiro para vocês”.
Nas palavras do ucraniano, o patriotismo
cívico toma o lugar do tradicional nacionalismo bélico. A pátria é o lugar em
que vivemos, celebramos e choramos, não um hino, uma bandeira ou desfiles
marciais. Quantos chefes de Estado entendem essa linguagem?
Zelensky disputou as eleições presidenciais
de 2019 como outsider, denunciando a corrupção endêmica na elite política
ucraniana. Na campanha, falou verdades simples, mas não simplórias. Disse,
especialmente, que pretendia romper a cisão entre os ucranianos do oeste e os
do leste, cuja primeira língua é o russo. Terminou obtendo 73% dos votos.
Depois, como acontece tantas vezes, a distância entre expectativas e realidades
jogou por terra seus índices de popularidade. A agressão militar russa
transformou-o em herói nacional — e estadista europeu.
Sob fogo, Zelensky revelou genialidade
estratégica. Nos dias iniciais da guerra, reivindicou o ingresso do país na
União Europeia. Embora não pudesse explicitar, trocava a ambição constitucional
ucraniana de entrar na Otan por um lugar no bloco europeu. Por essa via,
sintetizou a meta nacional de pertencer à Europa democrática e,
simultaneamente, abriu uma fresta de negociação da paz com a Rússia.
De uma Kiev sitiada, o presidente
improvável distingue a busca pela paz do pacifismo hipócrita que, desde o
“apaziguamento” de Munique, nunca saiu de moda. “O povo da Ucrânia quer paz.
Não estamos falando de paz a qualquer preço. Falamos sobre paz e sobre o
direito de todos de definir o próprio futuro. Nos defenderemos. Atacando-nos,
vocês verão nossos rostos. Não nossas costas —nossos rostos.” Putin pode vencer
a guerra, mas já perdeu a Ucrânia.
Sem a resistência desesperada dos militares
e do povo ucraniano, a Alemanha não teria revertido seu paradigma de política
externa, o Ocidente não se unificaria em torno das sanções à Rússia, e a
Ucrânia já não teria armas para se defender. Soberania, autodeterminação,
integridade territorial — Zelensky insiste nos princípios consensuais de uma
ordem internacional ancorada em regras. É por isso que, com tristes exceções,
entre elas o governo Bolsonaro, o mundo democrático alinhou-se à causa
ucraniana.
A Ucrânia, como a Espanha dos tempos da
Guerra Civil, vai se tornando uma ideia — e um divisor de águas.
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