Valor Econômico
Paulo Guedes deixou claro que não tem mais
coragem de enfrentar os piratas privados e as criaturas do pântano político em
nome de um sistema tributário mais eficiente
Há uma guerra lá fora, e por aqui a vida
transcorre normalmente. Com tantos problemas internos, nossas batalhas são
outras, mas, em ano eleitoral, vivemos um período de cessar-fogo.
A sociedade brasileira é bombardeada
diariamente pela desigualdade, miséria, fome e retrocessos na educação, na
saúde e na segurança. Na economia, vivemos sob o fogo cerrado da baixa
produtividade no setor privado, de ineficiências estatais e de um sistema
tributário caótico.
Sem muita estratégia, mobilizamos recursos,
gastamos muita munição, e continuamos levando chumbo de nossos maiores
inimigos.
Nos anos eleitorais, contudo, a classe política combina uma trégua. Com medo de perder votos, presidente, deputados e senadores, ninguém quer fazer guerra contra ninguém. Toda medida que possa mexer nos interesses de grupos de interesses é devidamente deixada pra depois das eleições.
A decisão do governo de reduzir em 25% as
alíquotas do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), tomada na
sexta-feira de Carnaval (25/02), ilustra bem essa tática de não querer comprar
briga para corrigir as inúmeras distorções da economia brasileira.
O diagnóstico para nosso sistema tributário
disfuncional é conhecido de todos: vários tributos, de administração muito
complexa e com incidência bastante desigual entre os setores, que inibem e
distorcem investimentos, além de ser socialmente regressivos (os mais pobres
acabam pagando proporcionalmente mais em relação à sua renda).
Realizar uma ofensiva pela simplificação e
melhoria da equidade de nosso modelo tributário trará inegáveis ganhos para o
país, mas deixará mortos e feridos no caminho. Empresas ineficientes, e em
alguns casos setores inteiros, só sobrevivem à concorrência graças a isenções,
créditos presumidos e outros benefícios fiscais. Unificar tributos e alíquotas
trará ganhos coletivos, mas perdas individuais - e um governo só será bem-sucedido
em aprovar uma reforma tributária verdadeira se estiver disposto a enfrentar a
resistência de quem lucra.
Paulo Guedes sempre repete que “piratas
privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano político se associaram
para saquear o povo brasileiro”. A frase é ótima, pois descreve com perfeição o
ambiente reinante em Brasília há décadas. Pena que o ministro tenha feito tão
pouco para enfrentar esses monstros de nossa vida política.
O ministro das frases de efeito e dos
números mágicos encerra o mandato entregando arremedos das transformações
megalomaníacas que prometeu. Para quem iria privatizar quase tudo, a
capitalização da Eletrobrás, se vier, será um prêmio de consolação. Longe de
conseguir zerar toda a dívida pública, “que consome um Plano Marshall por ano
em juros”, o homem forte da economia já se vangloria por, talvez, zerar o
déficit primário em 2022. Sem conseguir abrir o país ao exterior, comemora o
corte de um décimo nas tarifas de importação.
A redução das alíquotas do IPI em um quarto
é mais um exemplo da tática de Guedes de recorrer a atalhos para chegar na
campanha eleitoral dizendo que entregou alguma coisa, já que desistiram da
reforma tributária.
Em vez de batalhar no Congresso pela
aprovação das PECs nº 45 ou 110/2019, que unificam IPI, Pis, Cofins, ICMS e ISS
num único Imposto sobre Bens e Serviços, Guedes se limita a fazer, por decreto,
um agrado aos empresários ligados à Fiesp e à CNI. É melhor do que nada, claro,
mas longe de ser o necessário para iniciar o processo de “re-industrialização
da economia brasileira”, como anunciou.
A opção por uma diminuição linear das
alíquotas também demonstra que o então todo-poderoso ministro evitou encarar os
interesses incrustrados na tabela do IPI. Existem hoje vigentes 30 níveis
diferentes deste tributo, de 0% a 300%, com grande variância inclusive dentro
de um mesmo setor (ver tabela abaixo). Aplicar um corte de 25%, como fez o
governo, não altera a dispersão.
Se estivesse disposto a conferir um pouco
mais de racionalidade à tributação dos bens industrializados no país, o governo
poderia ter simplificado a estrutura reduzindo o número de alíquotas
diferentes, eliminando discussões bizantinas. Um exemplo de dúvida que chegou
até o STF: garrafão de água mineral é “embalagem de produtos alimentícios” (IPI
de 0%) ou “garrafão, garrafa, frasco e artigos semelhantes” (IPI de 15%)?
A desejável simplificação da tabela do IPI
em poucas faixas de tributação, contudo, faria com que alguns setores pagassem
menos, e outros mais. Guedes não quis confusão com ninguém.
Se fosse um pouco mais ambicioso, o
ministro poderia ainda condicionar a baixa no IPI para alguns setores, exigindo
em troca menores tarifas de importação. Em vez disso, preferiu ceder aos
pleitos do amigo do presidente para zerar o imposto sobre jet-skis e asas
deltas.
Na tabela do IPI, cada alíquota esconde um
lobby. Neste fim de mandato, Paulo Guedes já deixou claro que não tem mais
coragem de enfrentar os piratas privados e as criaturas do pântano político em
nome de um sistema tributário mais eficiente.
*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
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