O Globo / O Estado de S. Paulo
Esse é o título em português do filme de
Frank Capra “It’s a wonderful life”, obra que consolida o cinema como capaz de
competir com a melhor literatura. Capra confessa em sua autobiografia, “The
name above the title” (“O nome acima do título”), que investiu nele “tudo o que
era e tudo o que sabia”.
No fim da Segunda Guerra Mundial — ele serviu no Departamento de Propaganda —, Capra estava afastado do ambiente ultracompetitivo de Holywood e, perto dos 50 anos, apostou na história “The greatest gift” (“O maior presente”), um conto de Van Doren Stern inspirado num sonho e, em 1943, rejeitado por revistas e divulgado pelo autor em 200 cartões de Natal. Foi assim que virou filme a história do pai de família quebrado, como muitos neste Brasil de 2022, que tenta se matar, mas a quem um anjo, enviado pelas preces dos seus entes queridos, realiza o milagre de fazer ver a falta que sua existência faria caso não tivesse nascido e vivido — nosso maior presente.
O filme é enquadrado pela visão americana
do Natal, mas vai muito além. É, sobretudo, uma crítica aos dois lados do
capitalismo. O do banqueiro egoísta, preso a uma cadeira de rodas, símbolo da
mais-valia de todos os que amam o poder pelo poder; e a do herói, herdeiro sem
querer de uma frágil cooperativa que socializa o dinheiro financiando casas
para trabalhadores e imigrantes (Capra foi um imigrante paupérrimo). A
cooperativa opera como nossos “bancos de habitação”, sempre canibalizados pelos
populismos de direita e esquerda.
O filme também especula sobre um intrigante
problema filosófico. A questão de ver o mundo em que se viveu sem nele ter
nascido. Um exercício que, inconscientemente, praticamos. Um olhar duplo. No
primeiro, o real; no segundo (graças ao milagre da imaginação), as mesmas
pessoas, mas sem nossa presença. Essa possibilidade de assistir a uma
impossível saída da vida que vivemos é a melhor prova do poder do cinema que
jamais vi no cinema. Seu clímax ocorre quando o herói — prestes a se suicidar —
revê milagrosamente sua existência e a implora de volta. Precisamente porque
compreende que todos somos fabricados por sofrimentos e dificuldades.
É quando Capra prova quanto tocamos em
inúmeras outras vidas. “A felicidade não se compra” é um filme revelador de que
ser é melhor do que ter.
O que tem isso a ver com “nosso Brasil”, em
plena ebulição de venda de felicidade eleitoral, em que, nós, pessoas comuns,
somos obrigados a ver, ouvir e eventualmente “comprar” uma entrada (ou voto)
nesse filme de politicagem, encontros e desencontros que tipificam essas
transições de poder político e institucional?
Arrisco-me a dizer que o filme é um
contraponto a essa busca eleitoreira obviamente marcada pela falsidade, porque
ilusória e repetitiva, em que vidas duplicadas e contrárias a seus propalados ideais
polarizam-se como resultado de um populismo estrutural que só pode levar à
insinceridade e ao engodo — um autoengano.
Vejam os heróis-candidatos e como eles
retornam a suas “primeiras” vidas, tentando refilmá-las como se elas fossem
coerentes com o que fizeram e fazem numa viagem de cinema... Pois, tanto de um
lado quanto do outro, houve uma cilada em colocar em prática os ideais que
pregavam e prometiam praticar.
Aliás, eles não se opõem, mas se completam,
pois, sem a corrupção lulopetista, não haveria nenhuma chance para esse
bolsonarismo, cujas marcas são a confusão, a violência, o caos e a negação.
Filme é filme, realidade é realidade. Mas existem princípios morais que comandam a prática política? Ou só vale fazer tudo para ganhar e “tomar o poder”? Há coerência na vida social, ou somos todos tão presos a nossos interesses quanto os candidatos que — sem dúvida e com as devidas, mas cada vez mais raras, exceções — se aventuram a disputar papéis muito acima de seus talentos?
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