O Estado de S. Paulo
Bolsonaro estendeu a sua noção de inimigo
ao Supremo, um pilar da democracia, e não somente ao seu adversário principal
na eleição, Lula.
O cenário político brasileiro entrou numa
zona cinzenta, de contornos indefinidos, em que o jogo partidário normal está
derrapando para o confronto institucional. Não se trata apenas de um embate
eleitoral, próprio do jogo democrático, mas sinaliza para algo mais, a saber, a
própria existência de instituições democráticas. No momento em que as próprias
instituições são questionadas e sua legitimidade é posta em dúvida, a política
deriva para uma espécie de não política no sentido clássico do termo, isto é,
pode concretizar-se em soluções autoritárias, que se situam fora do cenário
propriamente democrático.
A partir da condenação do deputado Daniel Silveira, da base de apoio bolsonarista, pelo Supremo Tribunal Federal, o presidente Bolsonaro aproveitou-se da ocasião para deslanchar toda uma campanha contra o Supremo enquanto instituição, vindo, na sequência, a questionar o processo de apuração da urna eletrônica, chamando as Forças Armadas para si, como se fizessem parte de sua base de apoio, quando são instituições de Estado. Há, claramente, aqui um apagamento de fronteiras constitucionais. Assim se conduzindo, ele tornou o próprio Supremo o seu novo inimigo, o que significa dizer que a própria democracia pode estar a perigo. Note-se que o alvo não é Lula ou outro competidor, mas uma instituição republicana, sem a qual o regime democrático desmorona. O inimigo torna-se institucional.
Não se trata, aqui, de defender a decisão
específica do Supremo, considerada inclusive por não bolsonaristas como
excessiva em sua pena, além de criar problemas, no que diz respeito à cassação
do mandato, com o Poder Legislativo, que teria essa cassação como uma atribuição
sua. Outros poderiam argumentar, com certa dose de razão, que o inquérito das fake news já teria ido
longe demais. No entanto, não é isso que está em questão, uma vez que o
presidente Bolsonaro, por sua vez, no uso de suas prerrogativas presidenciais,
recorreu ao indulto individual como se estivesse a defender a liberdade, um
princípio constitucional. Deu, assim, um passo político temerário, colocando-se
na posição de revisor constitucional, quando não tem essa prerrogativa. Anulou,
dessa maneira, a divisão de Poderes.
Trata-se de uma autoatribuição sem nenhuma
base constitucional. O indulto é, sim, uma prerrogativa sua para ser utilizada
com o objetivo de suspender a pena dos criminosos, não lhe cabendo discutir as
razões da condenação. Reiterando, ele não é uma suprema instância cujo poder
reside acima do próprio Judiciário. Seria ele, segundo uma tal concepção, um
poder correcional das decisões de um Supremo que cessaria de ser supremo. Em
outras palavras, tal formulação é de cunho claramente autoritário, a partir da
qual as portas estariam abertas para ele “corrigir” qualquer decisão de nossa
mais alta Corte, o que significaria dizer que poderia descumprir qualquer
decisão dela derivada. Poderia não acatar, por exemplo, uma decisão do Supremo
relativa aos resultados da urna eletrônica, como se coubesse a ele decidir
sobre esses resultados. A crise institucional estaria instalada.
Note-se que Bolsonaro chegou a utilizar a
expressão “comoção social” para justificar o seu ato de indulto, quando não
houve nenhuma manifestação deste tipo, salvo o barulho já usual de suas redes
sociais, que são ainda mais atiçadas quando seus objetivos políticos assim o
exigem. Sugeriu que haveria uma profunda insatisfação social com a condenação
de Daniel Silveira, quando ela concerne somente à própria bolha bolsonarista. A
imensa maioria dos cidadãos brasileiros está preocupada com a inflação, com o
desemprego, com a baixa renda e com suas necessidades mais imediatas.
Desde uma perspectiva eleitoral, o atual
mandatário procurou unicamente aumentar a coesão do grupo dos seus apoiadores,
cansados e desiludidos com a falta de cumprimento de suas promessas,
exemplificada em sua aliança com o Centrão, em sua “conversão” à “velha
política”.
A política bolsonarista, conforme
assinalado em outros artigos, é de cunho schmittiano, baseada na distinção
entre amigo e inimigo. Há uma clara estratégia a esse respeito, embora as
oportunidades para reiterá-la resultem das intervenções, muitas vezes improvisadas,
do presidente. Recuos fazem igualmente parte desta sua estratégia, como
moderações repentinas, a exemplo das recentes manifestações de rua. O inimigo é
todo aquele que é designado como tal, não importa quem seja ou o que faça.
Basta que tenha essa designação, que é atribuição daquele que assim o denomina.
Pode ser qualquer um, seja alguém real, seja alguém imaginário, seja uma
instituição.
No caso em questão, Bolsonaro estendeu a
sua noção de inimigo ao Supremo, um pilar da democracia, e não somente ao seu
adversário principal, Lula. Tivesse ele se restringido a este último, estaria
ainda submetido às regras democráticas; extrapolando seu gesto, ele termina se
situando para além dessas regras. Passa a democracia a ser o seu alvo.
*Professor de filosofia na UFRGS.
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