segunda-feira, 9 de maio de 2022

Washington Olivetto: Artistas eternizados após vencer guerras e ditaduras

O Globo

Picasso e Matisse atravessaram duas Guerras Mundiais e a Guerra Civil Espanhola sem pegar em armas. Mas jamais largaram os pincéis. Em 1937, Picasso pintou “Guernica”, o maior manifesto contra a violência de todos os tempos. E, no auge da tristeza pela Segunda Guerra Mundial, Matisse criou aquela que talvez seja a sua obra mais alegre, a série “Jazz”.

Artistas, em tempos difíceis, se manifestaram de diferentes maneiras. Alguns criando trabalhos que correram o risco de ser vistos como datados tempos depois; outros, criando obras acusadas de alienadas quando feitas, mas reconhecidas no longo prazo. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e deportados pelos militares do Golpe de 1964, talvez por causa de suas canções, talvez porque seu comportamento anunciava uma revolução estética, que podia anteceder uma revolução política. Apesar da violência que sofreram, nada impediu que, anos depois, compusessem canções de celebração ao prazer, como “Odara” e “Palco”.

Também no período dos militares, Chico Buarque foi convidado a se retirar do país por causa de seus versos contundentes, e Geraldo Vandré foi defenestrado após a catarse provocada pela canção “Pra não dizer que não falei das flores”. Chico voltou tempos depois e continuou perseguido e censurado, a ponto de criar o heterônimo Julinho da Adelaide; e Vandré jamais foi o mesmo depois que voltou (ou continuou o mesmo, segundo outras versões).

Artistas serem personagens de guerras e contendas políticas é algo que acontece desde que o mundo é mundo. Envolvendo todas as manifestações culturais, e não apenas a pintura e a música. No Brasil, pós-golpe de 1964, foram produzidas peças de teatro como “O abajur lilás”, de Plínio Marcos; livros como “O cobrador”, de Rubem Fonseca; filmes como “O bandido da luz vermelha”, de Rogério Sganzerla; e novelas como “O bem -amado”, de Dias Gomes. Obras claramente oposicionistas, que passaram pelas frestas da censura. Enquanto isso, na Argentina, a cantora Mercedes Sosa, intérprete da canção “Gracias a la vida”, era perseguida pelos governantes.

Noutros tempos e noutros países também sempre foi assim. Na Rússia de Stálin, na Itália de Mussolini ou na Alemanha de Hitler, artistas também foram proibidos e perseguidos. Fato que ocorreu do mesmo modo em Portugal, no governo Salazar, e na Espanha, no governo Franco. Relatando uma dessas tragédias, o cinema relembrou recentemente a violência do franquismo no filme de Pedro Almodóvar “Madres paralelas”,em que assassinos falangistas são lembrados pelos crimes que cometeram durante a Guerra Civil Espanhola. Curiosamente, todos esses ditadores, de diferentes nacionalidades, apesar do medo e do pânico que sempre provocaram, acabaram sendo personagens da mais ácida e crítica forma de arte que existe, o humor.

Em diferentes momentos da História, todos eles acabaram virando piada. Como virou piada no Brasil o gesto do partido do presidente Jair Bolsonaro, que tentou proibir cantores e compositores de se manifestar durante os shows de um festival de música popular em São Paulo. Evidentemente, essa proibição ilegal e descabida provocou inúmeras manifestações por parte dos artistas participantes e uma enorme adesão dos jovens presentes. Fato que deverá se repetir nas próximas eleições.

Quanto à guerra entre a Rússia e a Ucrânia, certamente o mais violento e descabido acontecimento dos últimos anos, muitos dizem que ela não será documentada por grandes manifestações artísticas, já que aconteceu nos tempos da internet, quando tudo é mais instantâneo e descartável. Tudo tem menos arte. Dessa guerra, sabe-se até agora que só tem alguma certeza a respeito dela quem está muito mal informado. Sabe-se também que diversos pintores e escultores, tanto russos quanto ucranianos, já criaram obras sobre o tema, assim como inúmeros artistas de outras áreas e nacionalidades. São criadores de diferentes estilos e tendências, abrangendo desde gente consagrada, como a banda Pink Floyd, a rappers iniciantes.

Se essas obras serão eternizadas ou não, só o tempo dirá. Não é todo dia que uma guerra gera um “Guernica”.

 

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