O Globo
Bastam alguns dias de caminhada pelas ruas
de Manhattan ou do Brooklyn, em Nova York, com um pit stop estratégico na
livraria Strand, para adaptar de Francis Fukuyama uma definição: a democracia
brasileira passa por profunda crise cognitiva.
O sociólogo forjou décadas atrás o conceito
de “fim da História”, ao ver a derrocada da União Soviética, saudar a
prevalência da democracia liberal e a superação do modelo econômico estatista
da esquerda marxista. A História, a China e algumas crises, em especial a de
2008, o tornaram motivo de exacerbada desconfiança.
Não sei se Fukuyama conhece a jabuticaba,
mas deve estar informado de que a democracia brasileira, desde a derrubada da
ditadura, está presa num labirinto incapaz de encontrar o futuro.
Passados mais de 30 anos, talvez por
deficiência cognitiva, ainda se digladiam as principais forças que sustentavam
e derrubaram o regime militar. O feitiço do tempo faz o país reviver o falso
enredo de escolha entre uma extrema direita subserviente ao atraso produtivo e
uma velha esquerda corporativa. Ambas se conectam na prática do patrimonialismo
de quatro costados e agora estão de mãos dadas perfiladas na defesa de Putin.
Portanto cinicamente solidárias à chacina na Ucrânia.
Talvez seja o caso de pensar no atraso tardio da primeira previsão de Fukuyama, não apenas pela incapacidade de não ter ocorrido renovação política no Brasil, mas também pelas ideias envelhecidas escandidas desavergonhadamente pelos dois principais candidatos. O fim da História, como a jabuticaba, é coisa nossa ao permanecer uma visão de desenvolvimento econômico de cepa militar-nacionalista-esquerdista. Um angu da TFP com o MR-8.
Embora escondido, o desastre Dilma Rousseff
não foi acaso nem quimera, mas um fato ideológico da velha esquerda. Como
Bolsonaro, reincidência da extrema direita militar e da histeria religiosa —
dois mandatários a serviço do pensamento corporativista que impregnou o Brasil
desde o golpe de 64, corroborado desde o apoio de Luís Carlos Prestes a Getúlio
Vargas.
Um pouco de História sempre ajuda.
Em 1973, a oposição ao regime militar batia
na tecla da volta das liberdades democráticas — havia censura na imprensa,
tortura, assassinato de presos políticos. O governo Médici vendia a ideia de
que se vivia um crescimento econômico e, portanto, liberdade ou eleições
diretas eram detalhes irrelevantes.
Sempre é bom lembrar: boa parte da
população engolia o discurso oficial. Além da necessidade humana de acreditar
em Papai Noel, havia a manipulação do regime. O general Médici nadava em
popularidade, e ninguém desconfiava das estatísticas oficiais. O pessoal ia ao
supermercado, via que o preço do tomate subia a cada semana, só que não ligava
o nome à coisa: inflação.
Mesmo sob censura, mas sem dados
alternativos, a imprensa buscava passar elementos de que a construção econômica
comandada pelos militares e dirigida pelo ministro da Fazenda, Delfim Netto,
era um embuste.
Até que surgiu o Dieese, comandado por um
seminarista, economista de profissão que colocou o ovo em pé. Walter Barelli,
criado por uma mãe viúva na periferia paulistana, levantou dados dos salários
dos trabalhadores, cruzou preços dos alimentos, contratação de empregados e
chegou a números diferentes dos divulgados pela ditadura militar.
Era o que faltava para a oposição mais
moderna conseguir mobilizar a população: o bolso, o bolso. O bordão da
democracia podia não empolgar, ao contrário da inflação, que era compreendida
independentemente de ideologia.
A grande vitrine da ditadura — o sucesso
econômico, o controle da inflação detonada desde JK — estava enfim eclipsada
por números reais. Em torno deles, se juntaram os velhos e novos líderes
sindicais — Lula entre eles —, o movimento estudantil, as organizações de
defesa de direitos civis e ainda as lideranças religiosas ligadas à oposição,
como Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo e glorioso defensor dos
presos políticos.
Bem que o governo tentou desmobilizar a
oposição e seu novo eixo de luta, até que começaram defecções entre suas
fileiras. Políticos governistas, mesmo direitistas e capazes de enxergar
comunismo até no camundongo Mickey, viram o barco à deriva quando o Banco
Mundial confirmou que os índices oficiais brasileiros eram enganosos,
mentirosos — fake news!
O Brasil já estava sob um descontrole
inflacionário como atestavam os números do Dieese e, sim, havia perdas
salariais. Os índices que regulavam os dissídios roubavam os trabalhadores.
O Dieese de Walter Barelli forneceu à
oposição régua e compasso para ir às ruas com uma bandeira: “Abaixo a
carestia!”.
Foi o início real da derrocada da ditadura
militar. Mesmo proibidas, começaram a ocorrer greves e manifestações de rua.
Embora reprimidas, foram montadas passeatas, a oposição ganhou fôlego e
aderência à população — a inflação come o salário da esquerda e da direita!
É a mesma carestia dos militares de antes,
agora sob os generais de pijama, que em 2022 condena mais da metade da
população a níveis calamitosos de pobreza.
Barelli era de esquerda, católico
praticante, estudou sempre em escola pública e várias vezes recusou se filiar
ao PT — preferiu o PSDB. Quando o presidente Itamar Franco pediu-lhe sugestão
de um nome para seu Ministério do Trabalho, em 1992, Lula não pensou em Aloizio
Mercadante ou Guido Mantega. Cravou:
— É o Barelli, Itamar.
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