quarta-feira, 22 de junho de 2022

Aylê-Salassié F. Quintão*; “La frontera del olvido”

“A fronteira esquecida”. É assim que é também visto o vale do rio Javari, no oeste da Amazônia, divisa do Brasil com o Peru e a Colômbia, onde foram mortos, há duas semanas, o sertanista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips.  Do lado colombiano, as Forças Armadas Revolucionárias da (FARC) e o Exército de Libertação Nacional (ELN) sempre disputaram território e a primazia no recrutamento forçado dos jovens para suas fileiras.  

De fato, para o jornalista free lancer do The Guardian, de Londres, seria uma bela matéria. Mas a visita à região recomenda cautela. No Brasil, se existe lugar que poderia ser chamado de “fim do mundo”, onde as leis são praticamente ignoradas, é ali, no oeste da Amazônia.  

O guerrilheiro Che Guevara chegou a pensar em iniciar sua incursão revolucionária pela América do Sul a partir daquela tríplice fronteira. Á região abriga não apenas uma longa fronteira seca, como é atravessada por alguns dos principais rios da bacia amazônica:  Negro, Japurá, Içá, Purus, o próprio Amazonas e seus afluentes. O Governo Federal mantém instalados ali vários   delegacias da Polícia e da Receita Federal, da Funai, do Ibama, da Funasa e outros, inclusive bases do Comando Militar da Amazônia. Mas, de verdade, as forças que atuam na região são outras.  

Estamos só de passagem - respondeu o chefe do grupo colombiano que descia de barco o Rio Negro no sentido de Manaus, e fora interceptado, em território brasileiro, no local conhecido no mapa do Brasil como a Cabeça do Cachorro, divisa com a Colômbia, mais acima. 

Aqui não é passagem de nada, meu caro. Aqui é o fim da linha. – respondeu o general Rosa, Comandante da tropa da fronteira, cuja unidade, quase a metade, é constituída    por indígenas da própria região. Fez os colombianos retornarem. Era o pessoal das FARC. 

Esta semana reúnem-se em Brasília ministros da Justiça do Brasil, da Colômbia, Equador, Bolívia, Chile, Peru, Guianas, Suriname, Paraguai e até da Argentina e Uruguai para promoverem estudos e ações integradas nas regiões de fronteiras entre si. A presença da Venezuela não consta. O Brasil tem fronteiras com 10 dos 12 outros países da América do Sul, numa extensão total de 16.885,7 km, que atravessam 9 tríplices fronteiras.   

O governo   brasileiro está em peso representado na Amazônia, mas, aparentemente, no oeste ninguém respeita as leis.  Servidores do Estado tem, inclusive, receio, de trabalhar na região.  Vez por outra é assassinado um fiscal, um indigenista (19 só este ano), um missionário. Entre as transgressões   mais comuns por ali estão o contrabando, lavagem de dinheiro, mineração ilegal, narcotráfico, tráfico de madeira, de armas, de pessoas e de recursos naturais, tudo controlado por chefões, localizados nas cidades próximas, por políticos e até por cartéis do lado colombiano e peruano. 

Vilas e cidades rarefeitas estão isoladas. As nações indígenas vivem no interior das matas.  São os “Povos da Floresta”. Há municípios em que se fala quatro a cinco línguas diferentes. Além disso, no próprio Vale do Javari, os índios vivem em confronto entre si até por território, o que torna a demarcação das terras, um tema prioritário e complexo. Em novembro 2014, dois índios matis morreram durante contato com corubos isolados. Em resposta, 15 indígenas corubos teriam sido assassinados em outro encontro, em setembro de 2015. O mesmo aconteceu com alguns madeireiros. A Funai   teve a sede ocupada pelos índios em Atalaia do Norte,  

Na região, o que está em jogo não é bem o território indígena físico   mas, primeiro, os recursos pesqueiros, madeireiros e de garimpo, conduzidos pelo homem branco. Segundo, a rota Javari é usada para o tráfico de drogas e o contrabando. Por ali passam armas pesadas para os grupos de traficantes do Rio de Janeiro e de São Paulo, flui o narcotráfico, o tráfico de pessoas de tal forma que não se sabe se a história da pesca do pirarucu não é um álibi. 

Os militares chegaram a desenvolver naquelas fronteiras um programa que se chamava Calha Norte. Era um tipo de ocupação pioneira, projetado, como Brasília, que oferecia incentivos e vantagens para os imigrantes para a região. Como se nada que a “milicada” fizesse tivesse valor, o Programa foi substituído por um tal de PPIF - Programa de Proteção Integrada das Fronteiras (PPIF), que se propunha a fortalecer a prevenção, o controle, a fiscalização e a repressão aos delitos. É muita coisa para um PIF só.  Assim como chegou, se foi no meio divagações políticas que se assiste por aí. 

Por incompetência e coragem, os órgãos públicos que atuam na região são, a cada novo ato de governo, esvaziados.  O Projeto Radam (fotogrametria aérea), cujos trabalhos acompanhei como repórter, produziu uma série de relatórios e mapas da Amazônia desconhecida, e que foram apropriados, fazendo a fama científica de alguns e a riqueza, na ilegalidade, de outros.  Aquelas equipes técnicas, algumas enterradas por lá mesmo, em acidentes aéreos, nunca foram mais lembradas.   

Mais tarde, como funcionário, acompanhei, os trabalhos de   Zoneamento Econômico e Ecológico Sustentável na região, conduzidos pela Secretaria da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente. Era um programa amplo, abrangendo a Amazônia Legal, financiado pelo Grupo dos Sete países mais ricos do mundo. Chamava-se PPG7 – Plano de Proteção das Florestas Tropicais, e era desenvolvido também em outros países nos trópicos. Tinha um orçamento maior que o do Ministério. Ciúmes, invejas pessoais, temperados ideologicamente, destruíram praticamente aquela concertação de órgãos e governos empenhados na sustentabilidade.  

Preocupados com os insistentes boatos de “internacionalização da Amazônia”, nos anos 70, os militares abriram estradas no coração da floresta, atravessando terras indígenas, e gerando muitos conflitos. Comecei a cobrir índios na morte, pelos waimiri-atroaris, da missão do padre Giovanni Calleri (11 pessoas) e, em seguida, do sertanista Gilberto Rodrigues na construção da BR-174 – Manaus-Caracaraí.  O Parque do Xingú absorveu 11 diferentes grupos atingidos por essas obras. De lá para cá, a Fundação Nacional do Índio, criada em substituição ao Serviço Proteção dos índios (SPI) veio reduzindo o número de servidores do quadro fixo da Funai na Amazônia, enfraquecendo a atenção aos povos indígenas.  De   1.360 funcionários, em 2013, distribuídos por nove estados da Amazônia Legal, em janeiro deste ano, o número havia caído para 689. Os índios ianomamis tiveram suas terras invadidas por arrozeiros com a cobertura do Estado.   

Os índios não estão mortos, nem são incapazes de gerir a si próprio como alguns querem fazer entender.  Para o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Roberto Barroso, e o procurador da República, Felício Pontes, o modelo de desenvolvimento adotado para a região pelos diferentes governos está errado. Mesmo diante das tentativa de permitir a exploração dos recursos naturais da região sem consultar os índios, de fazer vista grossa para o desmatamento e de tentar desqualificar o ministro e o procurador, sou levado a concluir que eles têm razão: não apenas nas denúncias, mas também na proposta de solução, ao pregarem um modelo de fixação das populações tradicionais da terra, com a exploração dos recursos naturais da Amazônia, de maneira regular, absolutamente sustentável.  

O modelo teria de ser capaz de articular as potencialidades biodiversas da Amazônia, com reservas extrativistas –, só na área vegetal existem 788 variedades de sementes   passíveis de uso humano -   com   a sociodiversidade, essa pluralidade cultural e espiritual dos povos e comunidades nativas. No Judiciário está se formando uma jurisprudência de respeito às opiniões, crenças, culturas e tradições espirituais dos Povos da Floresta. Está ai uma alternativa de gestão para a região, e a esperança dos povos nativos de nunca serem ignorados. 

*Jornalista e professor  

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