De fato, para o jornalista free lancer do The
Guardian, de Londres, seria uma bela matéria. Mas a visita à região recomenda
cautela. No Brasil, se existe lugar que poderia ser
chamado de “fim do mundo”, onde as leis são
praticamente ignoradas, é ali, no oeste da Amazônia.
O guerrilheiro Che Guevara chegou a pensar em iniciar sua incursão revolucionária pela América do Sul a partir daquela tríplice fronteira. Á região abriga não apenas uma longa fronteira seca, como é atravessada por alguns dos principais rios da bacia amazônica: Negro, Japurá, Içá, Purus, o próprio Amazonas e seus afluentes. O Governo Federal mantém instalados ali vários delegacias da Polícia e da Receita Federal, da Funai, do Ibama, da Funasa e outros, inclusive bases do Comando Militar da Amazônia. Mas, de verdade, as forças que atuam na região são outras.
Estamos só de passagem - respondeu o chefe do grupo colombiano que descia de barco o Rio Negro no sentido de Manaus, e fora interceptado, em território brasileiro, no local conhecido no mapa do Brasil como a Cabeça do Cachorro, divisa com a Colômbia, mais acima.
Aqui não é passagem de nada, meu caro. Aqui é o fim da linha. – respondeu o general Rosa, Comandante da tropa da fronteira, cuja unidade, quase a metade, é constituída por indígenas da própria região. Fez os colombianos retornarem. Era o pessoal das FARC.
Esta semana reúnem-se em
Brasília ministros da Justiça do Brasil, da Colômbia, Equador, Bolívia,
Chile, Peru, Guianas, Suriname, Paraguai e até da Argentina e Uruguai para
promoverem estudos e ações integradas nas regiões de fronteiras entre si. A
presença da Venezuela não consta. O Brasil tem fronteiras com 10 dos 12 outros
países da América do Sul, numa extensão total de 16.885,7 km, que atravessam 9
tríplices fronteiras.
O governo brasileiro está em
peso representado na Amazônia, mas, aparentemente, no oeste ninguém
respeita as leis. Servidores do Estado tem, inclusive, receio, de
trabalhar na região. Vez por outra é assassinado um fiscal, um
indigenista (19 só este ano), um missionário. Entre as transgressões
mais comuns por ali estão o contrabando, lavagem de dinheiro, mineração
ilegal, narcotráfico, tráfico de madeira, de armas, de pessoas e de recursos
naturais, tudo controlado por chefões, localizados nas cidades próximas,
por políticos e até por cartéis do lado colombiano e peruano.
Vilas e cidades rarefeitas estão isoladas.
As nações indígenas vivem no interior das matas. São os “Povos
da Floresta”. Há municípios em que se fala quatro a cinco línguas diferentes.
Além disso, no próprio Vale do Javari, os índios vivem em confronto
entre si até por território, o que torna a demarcação das terras, um tema
prioritário e complexo. Em novembro 2014, dois índios matis morreram durante
contato com corubos isolados. Em resposta, 15 indígenas corubos teriam sido
assassinados em outro encontro, em setembro de 2015. O mesmo aconteceu com
alguns madeireiros. A Funai teve a sede ocupada pelos índios em
Atalaia do Norte,
Na região, o que está em jogo não é
bem o território indígena físico mas, primeiro, os recursos
pesqueiros, madeireiros e de garimpo, conduzidos pelo homem branco. Segundo, a
rota Javari é usada para o tráfico de drogas e o contrabando. Por ali
passam armas pesadas para os grupos de traficantes do Rio de Janeiro e de
São Paulo, flui o narcotráfico, o tráfico de pessoas de tal forma que não se
sabe se a história da pesca do pirarucu não é um álibi.
Os militares chegaram a desenvolver
naquelas fronteiras um programa que se chamava Calha Norte. Era um tipo de
ocupação pioneira, projetado, como Brasília, que oferecia incentivos e
vantagens para os imigrantes para a região. Como se nada que a “milicada”
fizesse tivesse valor, o Programa foi substituído por um tal de PPIF - Programa
de Proteção Integrada das Fronteiras (PPIF), que se propunha a fortalecer
a prevenção, o controle, a fiscalização e a repressão aos delitos. É muita
coisa para um PIF só. Assim como chegou, se foi no meio divagações
políticas que se assiste por aí.
Por incompetência e coragem, os
órgãos públicos que atuam na região são, a cada novo ato de governo,
esvaziados. O Projeto Radam (fotogrametria aérea), cujos trabalhos
acompanhei como repórter, produziu uma série de relatórios e mapas
da Amazônia desconhecida, e que foram apropriados, fazendo a
fama científica de alguns e a riqueza, na ilegalidade, de outros. Aquelas
equipes técnicas, algumas enterradas por lá mesmo, em acidentes aéreos, nunca
foram mais lembradas.
Mais tarde, como funcionário, acompanhei,
os trabalhos de Zoneamento Econômico e Ecológico Sustentável na
região, conduzidos pela Secretaria da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente.
Era um programa amplo, abrangendo a Amazônia Legal, financiado pelo Grupo
dos Sete países mais ricos do mundo. Chamava-se PPG7 – Plano de Proteção
das Florestas Tropicais, e era desenvolvido também em outros países nos
trópicos. Tinha um orçamento maior que o do Ministério. Ciúmes, invejas
pessoais, temperados ideologicamente, destruíram praticamente aquela
concertação de órgãos e governos empenhados na
sustentabilidade.
Preocupados com os insistentes boatos
de “internacionalização da Amazônia”, nos anos 70, os militares abriram
estradas no coração da floresta, atravessando terras indígenas, e gerando
muitos conflitos. Comecei a cobrir índios na morte, pelos waimiri-atroaris, da
missão do padre Giovanni Calleri (11 pessoas) e, em seguida, do sertanista
Gilberto Rodrigues na construção da BR-174 – Manaus-Caracaraí. O Parque
do Xingú absorveu 11 diferentes grupos atingidos por essas obras. De lá para
cá, a Fundação Nacional do Índio, criada em substituição ao Serviço Proteção
dos índios (SPI) veio reduzindo o número de servidores do quadro fixo da
Funai na Amazônia, enfraquecendo a atenção aos povos indígenas.
De 1.360 funcionários, em 2013, distribuídos por nove estados
da Amazônia Legal, em janeiro deste ano, o número havia caído para 689. Os
índios ianomamis tiveram suas terras invadidas por arrozeiros com a
cobertura do Estado.
Os índios não estão mortos, nem são
incapazes de gerir a si próprio como alguns querem fazer entender. Para o
ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Roberto Barroso, e o
procurador da República, Felício Pontes, o modelo de desenvolvimento
adotado para a região pelos diferentes governos está errado. Mesmo diante das
tentativa de permitir a exploração dos recursos naturais da região
sem consultar os índios, de fazer vista grossa para o desmatamento e de tentar
desqualificar o ministro e o procurador, sou levado a concluir que eles têm
razão: não apenas nas denúncias, mas também na proposta de solução, ao pregarem
um modelo de fixação das populações tradicionais da terra, com a exploração dos
recursos naturais da Amazônia, de maneira regular, absolutamente
sustentável.
O modelo teria de ser capaz de articular as
potencialidades biodiversas da Amazônia, com reservas extrativistas –, só na
área vegetal existem 788 variedades de sementes passíveis de uso
humano - com a sociodiversidade, essa pluralidade
cultural e espiritual dos povos e comunidades nativas. No
Judiciário está se formando uma jurisprudência de respeito às opiniões,
crenças, culturas e tradições espirituais dos Povos da Floresta. Está ai uma
alternativa de gestão para a região, e a esperança dos povos nativos
de nunca serem ignorados.
*Jornalista e professor
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