O Globo
Dizem que “vivemos a vida”, mas, quando a
vida nos vive, as frustrações assustam porque, sendo vividos pela vida, ela
pouco liga para nossas reações.
Freud chama isso de “princípio de
realidade”, porque o mundo não está em sincronia conosco. Daí o desapontamento
que nos faz sofrer. E, no entanto, sem isso não teríamos história. Seríamos tão
vazios quanto um balão. Pois a vida só se torna interessante quando se
transforma numa singularidade — em alguma coisa que tem início, meio e fim. Ao
sentir a dor das nossas feridas, escapamos da eternidade do nada.
Fui profissionalmente confundido algumas vezes. A profissão de etnólogo ou antropólogo social não tem uniforme ou emblema. Há apenas o sujeito estranho o suficiente para, numa comunidade diferente da sua, ser novidade ou causar suspeita.
Na minha experiência de antropólogo,
iniciada aos 20 anos num Brasil dos anos 1960, não era fácil explicar essa
vocação de “estudar costumes”. Porque ser etnólogo e viver em outras sociedades
não é simples para quem realmente acredita em sistemas atrasados e adiantados.
Entre os chamados “índios”, você é recebido como um bisbilhoteiro inocente ou
indesejável.
Foi com tais desenganos que passei os meses
de agosto, setembro, outubro e novembro de 1961 com os gaviões, no sul do Pará.
No meu primeiro trabalho, acompanhado de Julio Cezar Melatti e ao lado de Roque
Laraia e do falecido Marcos Rubinger, companheiros do Museu Nacional, fizemos
uma jornada-odisseia do Rio a Goiânia para Porto Nacional, Carolina,
Tocantinópolis, Cristalândia e Pedro Afonso, até Marabá, onde nos instalamos na
única pensão da cidade, com sua latrina apavorante.
Depois, Melatti e eu fomos até Itupiranga
para chegar aos nativos. Fizemos uma marcha de 20 horas (com direito a dormida
e medo em rede e mordidas de mosquitos). No fim da manhã, chegamos a quatro
barracos cobertos de palha que formavam a aldeia dos gaviões, uns dos últimos
falantes de língua jê virgens de estudo etnológico.
Em Marabá e Itupiranga, entrei no sistema
local das deferências que definem as dobras entre superiores e inferiores no
Brasil. Conhecemos o prefeito e outras autoridades em Marabá, o mesmo ocorrendo
em Itupiranga, onde um anfitrião gentilmente nos recebeu em sua casa, ofereceu
seu endereço e, quando estávamos isolados entre os “índios”, abriu
sistematicamente todas as cartas que recebemos da família e do nosso professor
do Museu Nacional.
A hierarquia fazia seu papel — éramos
brancos, “ricos” e donos de estranhos aparelhos, praticávamos antropologia,
essa alucinada profissão de “viver com caboclos”.
Se os “índios” daquela época (como hoje)
eram obstáculo à conquista da fronteira da castanha e do ouro, viramos patrões
ambíguos porque jogávamos do lado errado e competíamos com os pretensos donos
de castanhais, que, de fato, eram dos nativos.
Como é que esses jovens “doutores” poderiam
estar interessados nesses “índios brabos” que viviam como animais? Era claro
que nosso alvo era fazer prospecção de metais preciosos ou minerais
radioativos. Nossa “brancura” e equipamento revelavam que, no fundo, éramos
espiões capitalistas ianques tentando roubar as riquezas do nosso amado Brasil.
Foi essa dúvida que justificou a violação de nossa correspondência.
Vistos como loucos e tratados como
suspeitos e espiões em Marabá, fomos recebidos na aldeia do Cocal como
visitantes exagerados porque lá ficamos por meses, vivendo a mesma vida dos
nativos e aturando sua curiosidade agressiva. Ademais, não eramos catequistas.
Fomos praticamente obrigados a dividir
nossas provisões e aprendemos que aquela humanidade não se baseava em guardar, mas
no distribuir e no dar para receber.
Passamos de doutores ricos, de espiões em
busca de metais radioativos, a xeretas e sovinas...
Eramos multiclassificáveis (ou
desclassificados), o que equivale a não ser em quase todos os lugares deste
mundo. E define o antropólogo como um espião que, corre a lenda, no fundo é um
bom sujeito.
Um comentário:
Antropólogo,sociólogo e Historiador,profissões interessantes e que se intercalam.
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