O Estado de S. Paulo
Da qualidade das políticas públicas depende o futuro da democracia e do desenvolvimento sustentável no Brasil
O próximo governo terá de produzir as
condições para a realização de políticas públicas orientadas por objetivos de
médio e longo prazos. Este deve ser o ponto de convergência básico entre todas
as forças políticas comprometidas com a democracia e o desenvolvimento
sustentável. Mais quatro anos de coalizão entre militares bolsonaristas e
políticos fisiológicos, sob o comando obscurantista do atual presidente e seu
exército de fanáticos, a obra de destruição estará completa.
Num mundo em rápida transformação
tecnológica e crescente tensão geopolítica, tornou-se ainda mais difícil para
os países de renda média, como o Brasil, ingressar no restrito clube dos países
desenvolvidos, do qual já estivemos mais próximos. Sem políticas públicas de
qualidade, estamos condenados à estagnação ou ao declínio.
A boa governança democrática depende de
vários fatores e tem muitos aspectos, mas o seu centro de gravidade é o
processo orçamentário. É por meio dele que preferências do eleitorado expressas
pelo voto se transformam em políticas de governo, por intermédio da deliberação
que se dá entre o Executivo e o Congresso, sob a pressão dos diversos grupos de
interesse que atuam no sistema político. O desafio da governança democrática é
compatibilizar as legítimas negociações em torno da alocação dos recursos
orçamentários com a necessidade de manter o controle sobre as contas públicas e
produzir políticas que ultrapassam cálculos e horizontes eleitorais e atendam
aos interesses mais amplos da sociedade.
Com o Plano Real, o orçamento anual deixou de ser pura peça de ficção e a programação plurianual de políticas públicas se tornou possível. O País pode traçar um rumo sob a inspiração social-democrata da Constituição de 1988, com ajustes aos ventos da globalização. O horizonte se alongou, mas várias pedras surgiram no caminho. As incertezas macroeconômicas se reduziram drasticamente no curto prazo, mas não o suficiente no prazo mais longo. Os Programas Plurianuais, previstos na Constituição para orientar os gastos públicos em períodos de quatro anos, se tornaram, assim, letra quase morta. Para complicar, o próprio passado virou fonte crescente de incerteza, com decisões judiciais sobre eventos anteriores ao Plano Real a provocar gastos não previstos.
Neste ambiente, os presidentes trataram de
assegurar o essencial para não perder apoio popular e sustentação parlamentar.
De um lado, contingenciando o orçamento aprovado pelo Congresso para ajustar a
realização do gasto ao objetivo de manter a inflação baixa. De outro,
negociando a liberação de emendas parlamentares de olho na manutenção de uma
maioria favorável ao governo no Congresso. Bons governos se distinguiram por
preservar, em grau mais elevado, políticas públicas de maior alcance em meio à
negociação com sua base parlamentar.
O chamado poder de agenda dos presidentes
eleitos foi decrescendo ao longo da última década. O Congresso conquistou
terreno tornando impositivas as emendas individuais e de bancadas. Bolsonaro
esperneou, mas cedeu às imposições do Centrão para não ter o mesmo destino de
Dilma Rousseff. Quase 30 anos depois do Plano Real, temos um “orçamento
secreto” e nenhuma regra fiscal crível a controlar as contas públicas.
Para construir a governança democrática de
que o Brasil precisa, não basta derrotar Bolsonaro e restabelecer padrões
mínimos de racionalidade na gestão do Estado. Da qualidade das políticas
públicas, incluída a forma de financiamento dos gastos, depende o futuro da
democracia e do desenvolvimento sustentável no Brasil. Isso requer uma agenda
coerente e compromisso político claro com ela. Essa agenda começa pela
redefinição de uma regra fiscal consistente com o equilíbrio macroeconômico e
abarca novas normas e práticas para o processo orçamentário, desde o
planejamento até a avaliação sistemática e independente das ações de governo,
passando pela atuação mais precisa e cirúrgica dos órgãos de fiscalização e
controle.
Deve incluir, também, reformas
constitucionais para ampliar gradualmente o espaço das despesas não
obrigatórias. Hoje, com mais de 90% dos recursos gastos para pagar despesas
obrigatórias, o Orçamento reflete decisões tomadas no passado. Um porcentual
excessivo em qualquer comparação internacional relevante. A melhoria da
qualidade do processo orçamentário ajudará a vencer resistências à ampliação da
margem livre do Orçamento, indispensável para que as políticas públicas possam
responder a novas exigências e prioridades.
Avanços nessa agenda requerem mudança nas
relações entre o Executivo e o Congresso e também na gestão dos recursos
humanos do Estado. Por isso mesmo, não são avanços fáceis. Sem eles, porém,
será muito difícil de responder aos desafios que o País enfrenta.
O futuro governo receberá uma herança
maldita do atual. As forças democráticas deverão assumir o compromisso de, seja
qual for o(a) novo(a) presidente, se engajar na difícil tarefa de reconstruir
as possibilidades de um futuro melhor para o Brasil e o seu povo.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do
Gacint-USP
Um comentário:
Muito bom o artigo,quem sabe,sabe.
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