Editoriais
Portas fechadas
Folha de S. Paulo
Defesa e Justiça fazem pressão inútil sobre
TSE, e Bolsonaro conversa com Moraes
Jair Bolsonaro (PL) gosta de exibir
valentia em público, mas parece estar se dando conta de que suas tentativas
desesperadas de tumultuar o processo eleitoral estão destinadas ao fracasso.
Desde que deflagrou a ofensiva contra o
Tribunal Superior Eleitoral, com ataques a seus integrantes e disseminação de
suspeitas infundadas para minar a confiança da população nas urnas eletrônicas,
tornaram-se mais evidentes os obstáculos no seu caminho.
Nos últimos dias, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e o da Justiça, Anderson Torres, anunciaram a intenção de participar da chamada aberta pelo TSE para interessados na fiscalização dos sistemas de votação.
Como em anos anteriores, as normas para o
procedimento foram definidas com grande antecedência. As Forças Armadas e a
Polícia Federal foram incluídas há meses no rol de instituições habilitadas a
atuar na auditoria, bem como outros órgãos governamentais e entidades da
sociedade civil.
Todos poderão acompanhar de perto as várias
etapas planejadas pelo TSE para assegurar a lisura da competição, dos testes de
integridade dos sistemas eletrônicos às verificações a serem feitas após a
conclusão da votação.
Mas não há lugar nesse monitoramento para
provocadores, e falará sozinho quem quiser aproveitar a oportunidade para
semear confusão, em busca de um pretexto qualquer para Bolsonaro contestar o
resultado das urnas.
As bazófias do mandatário podem até servir
para mobilizar seus seguidores, mas nenhuma comprovação ofereceram até aqui
para as fraudes sobre as quais ele não cansa de devanear.
Também se desfazem no ar as queixas
recorrentes de que sugestões do governo para aprimoramento do processo
eleitoral vêm sendo ignoradas. Como o TSE mostrou nesta semana, várias foram
acolhidas nos últimos meses.
Bolsonaro não dá trégua em suas agressões aos
magistrados responsáveis pela organização do pleito, em especial Alexandre de
Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal que assumirá em agosto a
presidência da corte eleitoral.
Na quarta (22), porém, o presidente
ofereceu um daqueles sinais de distensão típicos de quem reavalia riscos, ao
se encontrar com
o ministro a portas fechadas durante jantar na residência do
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Não há dúvida de que o cálculo político e a
índole autoritária de Bolsonaro o impelem para o confronto permanente com as
instituições que impõem limites ao seu arbítrio. Mas é certo também que os
custos de tal estratégia vêm se acumulando sem que o mandatário colha
resultados palpáveis.
Autistas no rol
Folha de S. Paulo
ANS mostra bom caminho ao ampliar lista de
terapias que STJ tornou taxativa
Decisões judiciais fundadas na melhor razão
nem sempre angariam popularidade para as cortes, como se viu no julgamento
sobre o rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)
pelo Superior Tribunal de Justiça.
Mas a reação do público não impede —antes,
favorece— o contínuo aperfeiçoamento das normas.
Uma maioria de seis ministros do STJ
decidiu, com três votos contrários, que a lista de tratamentos da ANS se reveste de
caráter taxativo. Ou seja, ela não se resume a mera exemplificação,
não exaustiva, do que deve ser custeado pelos planos privados de saúde.
O resultado acendeu a revolta de pacientes
e familiares que só têm acesso a certas terapias onerosas, ausentes do rol, por
meio de ações judiciais. De ora em diante, sentenças favoráveis ficariam
dificultadas.
Entre os que mais protestaram estiveram
famílias de portadores do transtorno do espectro autista, um distúrbio global
do desenvolvimento da criança e do adolescente a implicar dificuldades de
socialização. As alternativas terapêuticas são poucas e caras.
Os reclamos não foram em vão. Na
quinta-feira (23), a agência reguladora houve por bem ampliar
benefícios dos planos de saúde para pessoas no espectro autista.
Em 1º de julho passa a ser obrigatória a
cobertura de qualquer técnica ou método indicado pelo médico assistente para
tratamento de transtornos enquadrados na rubrica F84 da Classificação
Internacional de Doenças.
Com tal abertura, franqueiam-se aos
pacientes sessões ilimitadas com fonoaudiólogo, psicólogo, terapeuta
ocupacional e fisioterapeuta, por exemplo.
Em princípio, eles ganham acesso a técnicas
como ABA (análise aplicada do comportamento), modelo Denver de intervenção
precoce, integração sensorial e comunicação alternativa e suplementar.
É o melhor caminho: aprofundar debates
técnicos sobre terapias e demandar da ANS que dê urgência, compatível com o
imperativo de compaixão, a processos para incluir em sua lista inovações com
comprovação científica.
O rol deve
ser taxativo, pois recursos não são infinitos para custear qualquer
candidato a panaceia, mas não pode servir de barreira ao direito de se tratar.
A morosidade ou eventual leniência da
agência reguladora com o lobby de seguradoras contribui apenas para realimentar
a nefasta judicialização do setor.
A despudorada ‘bolsa-eleição’
O Estado de S. Paulo
Com o improviso irresponsável de sempre, Bolsonaro se dispõe a driblar as leis eleitorais e os limites fiscais, torrando bilhões de que não dispõe, na esperança de somar pontos nas pesquisas
No desespero para tirar sua candidatura da
estagnação, o presidente Jair Bolsonaro está disposto a torrar bilhões do
Orçamento e driblar regras eleitorais e limites fiscais para impulsionar sua
campanha. Sem qualquer estudo prévio, de olho apenas nas pesquisas e a menos de
100 dias da disputa presidencial, o Executivo pretende aumentar o valor mínimo
do Auxílio Brasil dos atuais R$ 400 para R$ 600, dobrar o Auxílio-Gás, hoje em
R$ 53, e criar um vale de mil reais mensais para caminhoneiros autônomos. Ainda
não há cálculo sobre o custo das medidas, mas as primeiras estimativas apontam
para R$ 50 bilhões até o fim deste ano.
Tudo se dará por meio de mais uma alteração
na Constituição. Para tentar reduzir – sem sucesso – os preços dos
combustíveis, o governo havia conseguido impor uma perda de mais de R$ 100
bilhões aos Estados, ao fixar, sem compensação, um teto de 17% a 18% para o
ICMS de bens essenciais. Não satisfeito, apostou em uma Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) para indenizar, com quase R$ 30 bilhões, aqueles Estados que
aceitassem reduzir a zero o ICMS sobre o diesel e o gás de cozinha. É bem
provável que o Executivo finalmente tenha se dado conta de que nenhum
governador aceitaria saltar nesse abismo; assim, encontrou outro fim para um
dinheiro que não tem.
Com a fome atingindo milhões de pessoas e o
avanço implacável da inflação – o IPCA-15 acumula alta de 12,04% em 12 meses
até junho –, evidentemente é papel do governo ajudar as famílias mais
vulneráveis a sobreviver. A questão é a forma como isso deve ser feito, e
Bolsonaro não poderia ter escolhido caminho pior. Devastando as bases do Bolsa
Família e eliminando todas as suas contrapartidas, como a exigência de presença
escolar e o cumprimento do calendário vacinal, o Executivo colocou em seu lugar
um programa de viés eleitoral e que trata desiguais da mesma forma, o oposto do
que preconizam as melhores políticas públicas. Sua malfadada cria, o Auxílio
Brasil, desconsidera a quantidade e a idade dos filhos e incentiva que pessoas
que dividem a mesma casa se cadastrem como se morassem separadas para receber
R$ 800.
Insistindo na existência de “invisíveis”, o
governo optou por jogar no lixo todo o legado de 21 anos de dados do Cadastro
Único para Programas Sociais, mas nem assim conseguiu zerar a fila de
beneficiários à espera de serem contemplados – já são 2,78 milhões, segundo a
Confederação Nacional dos Municípios (CNM). E para criar o voucher para
caminhoneiros e não ser vítima das mesmas greves que irresponsavelmente
incentivou em 2018, Bolsonaro está disposto a atropelar o teto de gastos e
todas as restrições da Lei das Eleições, da Lei de Responsabilidade Fiscal e da
Lei de Diretrizes Orçamentárias. E, se preciso for, usará a guerra na Ucrânia
como desculpa esfarrapada para lançar mão de um decreto para declarar estado de
emergência ou de calamidade.
Nem se disfarça mais que tudo se pauta pelo
horizonte de outubro. Todas as benesses terão validade até dezembro, deixando
claro que se trata não de uma política séria, mas de uma descarada exploração
política dos brasileiros mais necessitados. Na mais recente pesquisa Datafolha,
o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem 47% das intenções de voto, ante
28% de Bolsonaro, mas a vantagem do petista se amplia entre aqueles que ganham
até dois salários mínimos. Este grupo, que representa pouco mais da metade da
população, não esconde preferir Lula (56%) a Bolsonaro (22%), e 60% de seus
membros dizem que não votariam no presidente de jeito nenhum. O motivo é óbvio:
a inflação atinge todos, mas prejudica, sobretudo, os mais pobres. O ministro
da Casa Civil, Ciro Nogueira, sabe disso. Em entrevista ao jornal Valor,
admitiu que o avanço dos preços é o maior problema da campanha de Bolsonaro,
mas negou que o governo esteja fazendo estelionato eleitoral. Questionado sobre
as chances de recuperação da candidatura do chefe, disse que o jogo das
eleições “ainda não começou”, algo que deve ser encarado quase como uma ameaça.
Se tal partida ainda nem se iniciou na avaliação do governo, nem se imagina o
custo que a bolsa-eleição terá quando ela tiver fim.
As afinidades entre PT e Centrão
O Estado de S. Paulo
Ataque à Lei das Estatais, que impede o loteamento político de cargos, une partidos que, embora estejam em lados ideológicos opostos, se identificam na hostilidade à boa governança
A deputada e presidente do PT, Gleisi
Hoffmann, subiu à tribuna da Câmara para atacar a Lei das Estatais justamente
naquilo que a torna fundamental para a moralidade pública e a boa governança: o
veto à nomeação de políticos para a direção dessas empresas. Não por acaso, a
causa de Gleisi é a mesma do Centrão, também ansioso por restaurar a
possibilidade de lotear cargos nas estatais – em particular na Petrobras.
O PT, na imortal definição de Anthony
Garotinho, é o “partido da boquinha”, característica que, malgrado as
diferenças ideológicas aparentes, o torna tão parecido com os partidos do
Centrão, desde sempre movido por sinecuras e prebendas. A diferença é que os
petistas avançam sobre cargos para aparelhar o Estado e fazê-lo trabalhar para
seu projeto de poder, enquanto o Centrão se contenta com o acesso a benesses
pecuniárias e eleitorais. Para o País, não faz diferença: em ambos os casos,
dilapida-se a administração pública em favor de interesses particulares.
O alvo preferencial do PT e do Centrão é obviamente
a Petrobras, tratada, tanto por Lula da Silva quanto pelo presidente da Câmara,
Arthur Lira, como o demônio. Essa turma não gostou nem um pouco da Lei das
Estatais porque esta estabeleceu que a Petrobras deveria ser administrada por
profissionais do ramo do petróleo, e não do ramo da pilhagem.
Em seu discurso na Câmara, Gleisi Hoffmann
disse, ora vejam, que a Lei das Estatais “criminaliza a política”. Ora, não foi
a Lei das Estatais que criminalizou a política, e sim os partidos que tomaram a
Petrobras de assalto durante o mandarinato lulopetista. A Lei das Estatais é
justamente uma resposta civilizada à barbárie do petrolão e do descarado uso
político da Petrobras para fins eleitorais, que quase arruinaram a empresa.
O alvo do PT e do Centrão são os artigos 16
e 17 da Lei 13.303/2016. O artigo 17 exige experiência profissional de
executivos e veda a ocupação de cargos por ministros, dirigentes partidários,
sindicalistas e detentores de mandato no Legislativo, além de pessoas com
conflito de interesses. Para o PT, impor parâmetros mínimos para a escolha de
diretores e conselheiros de estatais é uma atitude discriminatória – mesmo
depois que anos de administrações petistas levaram a Petrobras a reconhecer uma
baixa contábil de R$ 6,2 bilhões por corrupção e a consumir R$ 100 bilhões
segurando reajustes de combustíveis.
O artigo 16, por sua vez, sujeitou o
administrador de empresas públicas às normas de governança do setor privado. Ao
incorporá-lo ao estatuto, a Petrobras deixou explícito que membros do Conselho
de Administração e da diretoria respondem, individual e solidariamente, pelos
atos que praticarem e pelos prejuízos que deles decorrerem. Isso significa que
os executivos podem ter de pagar o custo de uma gestão temerária com o próprio
bolso. Não por acaso, tornou-se um dos dispositivos mais eficazes para impedir
o saque das estatais: é muito fácil torrar dinheiro dos outros quando há
garantia de impunidade. Por esse motivo, os três últimos presidentes da
Petrobras escolhidos por Jair Bolsonaro, quando pressionados a adotarem uma
política intervencionista em nome de sua reeleição, preferiram a demissão.
A Lei das Estatais é um marco na história
do País. Representou o resgate da moralidade das empresas públicas e trouxe
resultados inegáveis – 2015 foi o último ano em que o conjunto de estatais
federais registrou prejuízo. Empresas lucrativas geram impostos que podem ser
usados para melhorar a vida da população, aumentar investimentos e impulsionar
o crescimento. Companhias mal administradas, ao contrário, disputam o escasso
espaço fiscal do Orçamento por aportes para sobreviver. A realidade dos fatos,
porém, não importa para quem só pensa em arrumar um discurso eleitoral
minimamente convincente, como Bolsonaro; para quem quer lotear o aparato do Estado
entre os amigos, como o PT; ou para quem só pensa em garantir nacos de poder
independentemente de quem esteja na Presidência a partir de 2023, como o
Centrão.
O desafio da exclusão digital
O Estado de S. Paulo
Pesquisa estima que 35,5 milhões de brasileiros, 1 em cada 5 na faixa de 10 anos ou mais, não são usuários da internet
O acesso à internet cresceu durante a
pandemia, mas a exclusão digital continua deixando milhões de brasileiros para
trás. Entre a população de 10 anos ou mais em todo o País, 35,5 milhões de
pessoas não eram usuárias da rede mundial de computadores no ano passado,
segundo estimativa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da
Sociedade da Informação (Cetic.br). Esse contingente correspondia a 19% da
população nessa mesma faixa etária − praticamente 1 em cada 5 indivíduos.
O dado faz parte da TIC Domicílios
2021, pesquisa amostral sobre o uso de tecnologias da informação e comunicação
lançada no dia 21 de junho pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
Em meio à crescente digitalização, tendência que ganhou força com a pandemia, é
preocupante que tamanha parcela da população permaneça excluída do mundo
digital.
O levantamento, menos mal, revelou
expressivo aumento de acesso à rede nas áreas rurais. De 2019 a 2021, o
porcentual de domicílios conectados passou de 51% para 71%. O índice também
subiu nas áreas urbanas, chegando a 83% dos lares. A estimativa é de que 148
milhões de pessoas, ou 81% da população na faixa dos 10 ou mais anos de idade,
tenham acessado a internet nos três meses anteriores à coleta dos dados. Esse
número, por óbvio, precisa crescer. E eis aí um desafio para os três níveis de
governo − União, Estados e municípios −, juntamente com o setor privado, que
vem desempenhando importante papel na interiorização do sinal de
internet.
No início de junho, por unanimidade, o Senado
aprovou proposta de emenda à Constituição (PEC) que inscreve a inclusão digital
como um dos direitos fundamentais previstos no art. 5.º. Nem poderia ser
diferente. O texto, apresentado pela senadora Simone Tebet (MDB-MS), seguiu
para análise na Câmara dos Deputados. Reflete, sem dúvida, uma realidade
inescapável: utilizar a internet, hoje, é questão de cidadania.
O levantamento também mostrou que a
desigualdade de acesso entre a população de maior e menor renda vem caindo,
embora continue elevadíssima. Na classe A, 100% dos domicílios tinham conexão à
rede, ante 61% nas classes D e E. A atual diferença de 39 pontos porcentuais,
referente ao ano passado, era mais que o dobro em 2015, atingindo 85 pontos.
Outras iniquidades foram captadas pela
pesquisa, como o tipo de equipamento usado para navegar na internet, assim como
a qualidade da conexão − o que interfere na experiência do usuário, podendo até
restringir ou desestimular certas atividades. A pesquisa estimou que 64% dos
usuários acessavam a internet exclusivamente por meio do celular, porcentual
que era de 32% na classe A e de 89% nas classes D e E. Uma disparidade ainda
maior apareceu no que diz respeito a ter ou não computador em casa: 99% dos
lares na classe A contavam com esse tipo de equipamento, ante apenas 10% nas
classes D e E.
Há tempos se sabe que a exclusão digital é
um dos principais entraves para o desenvolvimento do País. Como mostra a
pesquisa do Cetic.br, houve avanços, mas a desigualdade ainda é imensa, muito
além do aceitável numa sociedade que se pretende moderna.
PT insiste em programa sem cabimento
O Globo
A chapa Lula-Alckmin continua firme na
liderança das pesquisas eleitorais, mas as dúvidas sobre o governo que
resultará desse casamento improvável ainda despertam preocupação. Não há melhor
evidência disso do que as novas “diretrizes” para o programa de governo
apresentadas nesta semana. Diante da reação contra os absurdos da proposta
anterior, os partidos da coligação (PT, PSB, PSOL, Rede, PCdoB, PV e
Solidariedade) resolveram fazer uma revisão para tentar agradar a diferentes
públicos. Houve avanços, é verdade, mas o resultado continua decepcionante.
No campo dos avanços, para tentar aparar as
arestas com o eleitorado de centro, foram feitos acenos à categoria dos
policiais e foi cortado o trecho que pedia a revogação da reforma trabalhista
do governo Temer. Mesmo assim, a formulação sobre o tema continua ambígua. Não
se sabe ao certo o que querem os candidatos. Os termos são vagos o bastante
para poder significar qualquer coisa. O texto, apresentado como ainda sujeito a
debate, deixa tudo com um ar de provisório e abre caminho a todo tipo de
especulação.
No campo dos absurdos, o documento ainda
defende a revogação do teto de gastos e propõe outras formas de manter o
equilíbrio fiscal. Quais? Não se sabe. A justificativa para acabar com o
mecanismo que serve de âncora contra o endividamento descontrolado é pura empulhação
(“colocar os pobres e os trabalhadores no orçamento”). Parece até que o
Orçamento da União não dedica parcelas significativas às áreas sociais (como
saúde, educação ou combate à pobreza). Pobres e trabalhadores, nunca é demais
lembrar, são os que mais perdem por barbeiragens na área fiscal com efeitos na
renda e no emprego. Nesse ponto, o PT parece tão irresponsável quanto
Bolsonaro.
O documento até reconhece a necessidade de
uma reforma tributária. Mas recai na falácia do “argumento Robin Hood”, supondo
que taxar mais os ricos resolva o problema dos pobres. Claro que,
proporcionalmente, pobres deveriam pagar menos imposto (a tributação deveria
ser progressiva). Mas é demagogia acreditar que basta elevar os tributos dos
ricos. Seria necessário desfazer a teia espessa de privilégios e enfrentar
beneficiados por regimes tributários especiais incrustados no Estado.
Os equívocos continuam: “Vamos reverter o
processo de desindustrialização e promover a reindustrialização de amplos e
novos setores”. O setor industrial perde peso em relação ao PIB não apenas no
Brasil. Dizer que o objetivo será atingido com investimento público e evitando
a “desnacionalização do parque produtivo” equivale a retornar aos tempos das
benesses para os empresários amigos do poder.
Na obsessão em atacar a imprensa, o PT
cerra fileiras com Bolsonaro. Estão lá no documento a “regulamentação da mídia”
e “a defesa da democratização do acesso aos meios de comunicação”, eufemismos
para a tentativa de pôr um cabresto no jornalismo profissional. Numa
democracia, não é papel do governo determinar o conceito de “equilíbrio
editorial”. Se tais regras estivessem valendo nas administrações do PT,
provavelmente a extensão dos escândalos de corrupção não teria chegado ao
conhecimento público.
A chapa Lula-Alckmin faria bem em entender
as circunstâncias de 2022. Uma eventual vitória não pode representar a
aprovação de um programa de governo que, nos raros casos em que não é vago,
está simplesmente errado.
Decisões sobre armas e aborto expõem
ativismo da Suprema Corte nos EUA
O Globo
Duas decisões da Suprema Corte americana
deixaram claro nesta semana o risco inerente à intromissão do Judiciário em
temas que, por natureza, cabem ao Legislativo. A primeira foi a suspensão do
direito ao aborto, assegurado nos Estados Unidos em dois casos históricos: Roe
v. Wade (1973) e Planned Parenthood v. Casey (1992). A segunda foi a anulação
de uma lei que restringia a venda de armas no Estado de Nova York.
Ambas cumprem missões caras à agenda
conservadora do Partido Republicano — a favor da liberdade de portar armas,
contra a liberdade de abortar. Não é coincidência, portanto, que tenham sido
tomadas por placar idêntico e com votos idênticos: seis contra três,
reproduzindo a divisão entre juízes liberais (os três da minoria) e
conservadores (os seis da maioria).
Há, porém, uma contradição intrínseca entre
elas no que diz respeito aos deveres do Legislativo e do Judiciário. Em seu
voto derrubando Roe e Casey, o juiz Sam Alito argumenta que tema de natureza
tão sensível e controversa jamais deveria ter sido decidido por um tribunal.
Afirma que não há um direito ao aborto gravado na Constituição e que caberia
aos Legislativos decidir a questão. Alito tem razão nesse ponto.
Nos anos 1970, havia uma mobilização para
aprovar uma lei nacional autorizando o aborto por livre escolha da mulher. Com
Roe, a Suprema Corte, que então desempenhava um papel ativista na luta por esse
e outros direitos civis, assumiu a dianteira e esvaziou as iniciativas no
Congresso. Para o movimento pró-aborto, era mais fácil conseguir maioria entre
nove juízes do que entre 435 deputados e cem senadores. Desde então, nenhuma
legislação sobre o tema foi aprovada no Congresso (a última foi derrotada neste
ano), ontem conclamado pelo presidente Joe Biden a tornar lei Roe e Casey.
O Legislativo, foro correto para esse tipo
de debate, é o alvo da outra decisão, sobre as armas. No voto vencedor, o juiz
Clarence Thomas, ao contrário do que faz Alito, retira dos legisladores a
prerrogativa de decidir que tipo de controle impor à venda de armas, pois o
direito ao porte está gravado na Constituição. A consequência será a derrubada
de leis estaduais que fazem isso — com a provável escalada em homicídios,
suicídios, massacres e outras tragédias. Se Alito devolve uma prerrogativa aos
representantes eleitos, Thomas retira outra. Eis a contradição.
Na democracia, não cabe ao Judiciário tomar
decisões em nome do Legislativo nem impedi-lo de tomá-las. Os representantes
eleitos também não podem usar a Justiça como pretexto para se eximir de
legislar sobre temas controversos, que custam votos nas urnas. Cada Poder tem
seu papel. Para quem encara os tribunais como atalho legítimo na garantia de
direitos para os quais nem sempre há maioria no Parlamento, a lição da anulação
de Roe e Casey é simples: o mesmo ativismo judicial que apoia uma causa quando
a composição de um tribunal é favorável poderá derrubá-la no momento em que
essa composição mudar. Pode levar 50 anos, mas um dia acontece.
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