sábado, 25 de junho de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Portas fechadas

Folha de S. Paulo

Defesa e Justiça fazem pressão inútil sobre TSE, e Bolsonaro conversa com Moraes

Jair Bolsonaro (PL) gosta de exibir valentia em público, mas parece estar se dando conta de que suas tentativas desesperadas de tumultuar o processo eleitoral estão destinadas ao fracasso.

Desde que deflagrou a ofensiva contra o Tribunal Superior Eleitoral, com ataques a seus integrantes e disseminação de suspeitas infundadas para minar a confiança da população nas urnas eletrônicas, tornaram-se mais evidentes os obstáculos no seu caminho.

Nos últimos dias, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e o da Justiça, Anderson Torres, anunciaram a intenção de participar da chamada aberta pelo TSE para interessados na fiscalização dos sistemas de votação.

Como em anos anteriores, as normas para o procedimento foram definidas com grande antecedência. As Forças Armadas e a Polícia Federal foram incluídas há meses no rol de instituições habilitadas a atuar na auditoria, bem como outros órgãos governamentais e entidades da sociedade civil.

Todos poderão acompanhar de perto as várias etapas planejadas pelo TSE para assegurar a lisura da competição, dos testes de integridade dos sistemas eletrônicos às verificações a serem feitas após a conclusão da votação.

Mas não há lugar nesse monitoramento para provocadores, e falará sozinho quem quiser aproveitar a oportunidade para semear confusão, em busca de um pretexto qualquer para Bolsonaro contestar o resultado das urnas.

As bazófias do mandatário podem até servir para mobilizar seus seguidores, mas nenhuma comprovação ofereceram até aqui para as fraudes sobre as quais ele não cansa de devanear.

Também se desfazem no ar as queixas recorrentes de que sugestões do governo para aprimoramento do processo eleitoral vêm sendo ignoradas. Como o TSE mostrou nesta semana, várias foram acolhidas nos últimos meses.

Bolsonaro não dá trégua em suas agressões aos magistrados responsáveis pela organização do pleito, em especial Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal que assumirá em agosto a presidência da corte eleitoral.

Na quarta (22), porém, o presidente ofereceu um daqueles sinais de distensão típicos de quem reavalia riscos, ao se encontrar com o ministro a portas fechadas durante jantar na residência do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Não há dúvida de que o cálculo político e a índole autoritária de Bolsonaro o impelem para o confronto permanente com as instituições que impõem limites ao seu arbítrio. Mas é certo também que os custos de tal estratégia vêm se acumulando sem que o mandatário colha resultados palpáveis.

Autistas no rol

Folha de S. Paulo

ANS mostra bom caminho ao ampliar lista de terapias que STJ tornou taxativa

Decisões judiciais fundadas na melhor razão nem sempre angariam popularidade para as cortes, como se viu no julgamento sobre o rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) pelo Superior Tribunal de Justiça.

Mas a reação do público não impede —antes, favorece— o contínuo aperfeiçoamento das normas.

Uma maioria de seis ministros do STJ decidiu, com três votos contrários, que a lista de tratamentos da ANS se reveste de caráter taxativo. Ou seja, ela não se resume a mera exemplificação, não exaustiva, do que deve ser custeado pelos planos privados de saúde.

O resultado acendeu a revolta de pacientes e familiares que só têm acesso a certas terapias onerosas, ausentes do rol, por meio de ações judiciais. De ora em diante, sentenças favoráveis ficariam dificultadas.

Entre os que mais protestaram estiveram famílias de portadores do transtorno do espectro autista, um distúrbio global do desenvolvimento da criança e do adolescente a implicar dificuldades de socialização. As alternativas terapêuticas são poucas e caras.

Os reclamos não foram em vão. Na quinta-feira (23), a agência reguladora houve por bem ampliar benefícios dos planos de saúde para pessoas no espectro autista.

Em 1º de julho passa a ser obrigatória a cobertura de qualquer técnica ou método indicado pelo médico assistente para tratamento de transtornos enquadrados na rubrica F84 da Classificação Internacional de Doenças.

Com tal abertura, franqueiam-se aos pacientes sessões ilimitadas com fonoaudiólogo, psicólogo, terapeuta ocupacional e fisioterapeuta, por exemplo.

Em princípio, eles ganham acesso a técnicas como ABA (análise aplicada do comportamento), modelo Denver de intervenção precoce, integração sensorial e comunicação alternativa e suplementar.

É o melhor caminho: aprofundar debates técnicos sobre terapias e demandar da ANS que dê urgência, compatível com o imperativo de compaixão, a processos para incluir em sua lista inovações com comprovação científica.

O rol deve ser taxativo, pois recursos não são infinitos para custear qualquer candidato a panaceia, mas não pode servir de barreira ao direito de se tratar.

A morosidade ou eventual leniência da agência reguladora com o lobby de seguradoras contribui apenas para realimentar a nefasta judicialização do setor.

A despudorada ‘bolsa-eleição’

O Estado de S. Paulo

Com o improviso irresponsável de sempre, Bolsonaro se dispõe a driblar as leis eleitorais e os limites fiscais, torrando bilhões de que não dispõe, na esperança de somar pontos nas pesquisas

No desespero para tirar sua candidatura da estagnação, o presidente Jair Bolsonaro está disposto a torrar bilhões do Orçamento e driblar regras eleitorais e limites fiscais para impulsionar sua campanha. Sem qualquer estudo prévio, de olho apenas nas pesquisas e a menos de 100 dias da disputa presidencial, o Executivo pretende aumentar o valor mínimo do Auxílio Brasil dos atuais R$ 400 para R$ 600, dobrar o Auxílio-Gás, hoje em R$ 53, e criar um vale de mil reais mensais para caminhoneiros autônomos. Ainda não há cálculo sobre o custo das medidas, mas as primeiras estimativas apontam para R$ 50 bilhões até o fim deste ano.

Tudo se dará por meio de mais uma alteração na Constituição. Para tentar reduzir – sem sucesso – os preços dos combustíveis, o governo havia conseguido impor uma perda de mais de R$ 100 bilhões aos Estados, ao fixar, sem compensação, um teto de 17% a 18% para o ICMS de bens essenciais. Não satisfeito, apostou em uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para indenizar, com quase R$ 30 bilhões, aqueles Estados que aceitassem reduzir a zero o ICMS sobre o diesel e o gás de cozinha. É bem provável que o Executivo finalmente tenha se dado conta de que nenhum governador aceitaria saltar nesse abismo; assim, encontrou outro fim para um dinheiro que não tem.

Com a fome atingindo milhões de pessoas e o avanço implacável da inflação – o IPCA-15 acumula alta de 12,04% em 12 meses até junho –, evidentemente é papel do governo ajudar as famílias mais vulneráveis a sobreviver. A questão é a forma como isso deve ser feito, e Bolsonaro não poderia ter escolhido caminho pior. Devastando as bases do Bolsa Família e eliminando todas as suas contrapartidas, como a exigência de presença escolar e o cumprimento do calendário vacinal, o Executivo colocou em seu lugar um programa de viés eleitoral e que trata desiguais da mesma forma, o oposto do que preconizam as melhores políticas públicas. Sua malfadada cria, o Auxílio Brasil, desconsidera a quantidade e a idade dos filhos e incentiva que pessoas que dividem a mesma casa se cadastrem como se morassem separadas para receber R$ 800.

Insistindo na existência de “invisíveis”, o governo optou por jogar no lixo todo o legado de 21 anos de dados do Cadastro Único para Programas Sociais, mas nem assim conseguiu zerar a fila de beneficiários à espera de serem contemplados – já são 2,78 milhões, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). E para criar o voucher para caminhoneiros e não ser vítima das mesmas greves que irresponsavelmente incentivou em 2018, Bolsonaro está disposto a atropelar o teto de gastos e todas as restrições da Lei das Eleições, da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Diretrizes Orçamentárias. E, se preciso for, usará a guerra na Ucrânia como desculpa esfarrapada para lançar mão de um decreto para declarar estado de emergência ou de calamidade.

Nem se disfarça mais que tudo se pauta pelo horizonte de outubro. Todas as benesses terão validade até dezembro, deixando claro que se trata não de uma política séria, mas de uma descarada exploração política dos brasileiros mais necessitados. Na mais recente pesquisa Datafolha, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem 47% das intenções de voto, ante 28% de Bolsonaro, mas a vantagem do petista se amplia entre aqueles que ganham até dois salários mínimos. Este grupo, que representa pouco mais da metade da população, não esconde preferir Lula (56%) a Bolsonaro (22%), e 60% de seus membros dizem que não votariam no presidente de jeito nenhum. O motivo é óbvio: a inflação atinge todos, mas prejudica, sobretudo, os mais pobres. O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, sabe disso. Em entrevista ao jornal Valor, admitiu que o avanço dos preços é o maior problema da campanha de Bolsonaro, mas negou que o governo esteja fazendo estelionato eleitoral. Questionado sobre as chances de recuperação da candidatura do chefe, disse que o jogo das eleições “ainda não começou”, algo que deve ser encarado quase como uma ameaça. Se tal partida ainda nem se iniciou na avaliação do governo, nem se imagina o custo que a bolsa-eleição terá quando ela tiver fim.

As afinidades entre PT e Centrão

O Estado de S. Paulo

Ataque à Lei das Estatais, que impede o loteamento político de cargos, une partidos que, embora estejam em lados ideológicos opostos, se identificam na hostilidade à boa governança

A deputada e presidente do PT, Gleisi Hoffmann, subiu à tribuna da Câmara para atacar a Lei das Estatais justamente naquilo que a torna fundamental para a moralidade pública e a boa governança: o veto à nomeação de políticos para a direção dessas empresas. Não por acaso, a causa de Gleisi é a mesma do Centrão, também ansioso por restaurar a possibilidade de lotear cargos nas estatais – em particular na Petrobras.

O PT, na imortal definição de Anthony Garotinho, é o “partido da boquinha”, característica que, malgrado as diferenças ideológicas aparentes, o torna tão parecido com os partidos do Centrão, desde sempre movido por sinecuras e prebendas. A diferença é que os petistas avançam sobre cargos para aparelhar o Estado e fazê-lo trabalhar para seu projeto de poder, enquanto o Centrão se contenta com o acesso a benesses pecuniárias e eleitorais. Para o País, não faz diferença: em ambos os casos, dilapida-se a administração pública em favor de interesses particulares.

O alvo preferencial do PT e do Centrão é obviamente a Petrobras, tratada, tanto por Lula da Silva quanto pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, como o demônio. Essa turma não gostou nem um pouco da Lei das Estatais porque esta estabeleceu que a Petrobras deveria ser administrada por profissionais do ramo do petróleo, e não do ramo da pilhagem.

Em seu discurso na Câmara, Gleisi Hoffmann disse, ora vejam, que a Lei das Estatais “criminaliza a política”. Ora, não foi a Lei das Estatais que criminalizou a política, e sim os partidos que tomaram a Petrobras de assalto durante o mandarinato lulopetista. A Lei das Estatais é justamente uma resposta civilizada à barbárie do petrolão e do descarado uso político da Petrobras para fins eleitorais, que quase arruinaram a empresa.

O alvo do PT e do Centrão são os artigos 16 e 17 da Lei 13.303/2016. O artigo 17 exige experiência profissional de executivos e veda a ocupação de cargos por ministros, dirigentes partidários, sindicalistas e detentores de mandato no Legislativo, além de pessoas com conflito de interesses. Para o PT, impor parâmetros mínimos para a escolha de diretores e conselheiros de estatais é uma atitude discriminatória – mesmo depois que anos de administrações petistas levaram a Petrobras a reconhecer uma baixa contábil de R$ 6,2 bilhões por corrupção e a consumir R$ 100 bilhões segurando reajustes de combustíveis.

O artigo 16, por sua vez, sujeitou o administrador de empresas públicas às normas de governança do setor privado. Ao incorporá-lo ao estatuto, a Petrobras deixou explícito que membros do Conselho de Administração e da diretoria respondem, individual e solidariamente, pelos atos que praticarem e pelos prejuízos que deles decorrerem. Isso significa que os executivos podem ter de pagar o custo de uma gestão temerária com o próprio bolso. Não por acaso, tornou-se um dos dispositivos mais eficazes para impedir o saque das estatais: é muito fácil torrar dinheiro dos outros quando há garantia de impunidade. Por esse motivo, os três últimos presidentes da Petrobras escolhidos por Jair Bolsonaro, quando pressionados a adotarem uma política intervencionista em nome de sua reeleição, preferiram a demissão.

A Lei das Estatais é um marco na história do País. Representou o resgate da moralidade das empresas públicas e trouxe resultados inegáveis – 2015 foi o último ano em que o conjunto de estatais federais registrou prejuízo. Empresas lucrativas geram impostos que podem ser usados para melhorar a vida da população, aumentar investimentos e impulsionar o crescimento. Companhias mal administradas, ao contrário, disputam o escasso espaço fiscal do Orçamento por aportes para sobreviver. A realidade dos fatos, porém, não importa para quem só pensa em arrumar um discurso eleitoral minimamente convincente, como Bolsonaro; para quem quer lotear o aparato do Estado entre os amigos, como o PT; ou para quem só pensa em garantir nacos de poder independentemente de quem esteja na Presidência a partir de 2023, como o Centrão.

O desafio da exclusão digital

O Estado de S. Paulo

Pesquisa estima que 35,5 milhões de brasileiros, 1 em cada 5 na faixa de 10 anos ou mais, não são usuários da internet

O acesso à internet cresceu durante a pandemia, mas a exclusão digital continua deixando milhões de brasileiros para trás. Entre a população de 10 anos ou mais em todo o País, 35,5 milhões de pessoas não eram usuárias da rede mundial de computadores no ano passado, segundo estimativa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br). Esse contingente correspondia a 19% da população nessa mesma faixa etária − praticamente 1 em cada 5 indivíduos.

O dado faz parte da TIC Domicílios 2021, pesquisa amostral sobre o uso de tecnologias da informação e comunicação lançada no dia 21 de junho pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Em meio à crescente digitalização, tendência que ganhou força com a pandemia, é preocupante que tamanha parcela da população permaneça excluída do mundo digital.

O levantamento, menos mal, revelou expressivo aumento de acesso à rede nas áreas rurais. De 2019 a 2021, o porcentual de domicílios conectados passou de 51% para 71%. O índice também subiu nas áreas urbanas, chegando a 83% dos lares. A estimativa é de que 148 milhões de pessoas, ou 81% da população na faixa dos 10 ou mais anos de idade, tenham acessado a internet nos três meses anteriores à coleta dos dados. Esse número, por óbvio, precisa crescer. E eis aí um desafio para os três níveis de governo − União, Estados e municípios −, juntamente com o setor privado, que vem desempenhando importante papel na interiorização do sinal de internet. 

No início de junho, por unanimidade, o Senado aprovou proposta de emenda à Constituição (PEC) que inscreve a inclusão digital como um dos direitos fundamentais previstos no art. 5.º. Nem poderia ser diferente. O texto, apresentado pela senadora Simone Tebet (MDB-MS), seguiu para análise na Câmara dos Deputados. Reflete, sem dúvida, uma realidade inescapável: utilizar a internet, hoje, é questão de cidadania.

O levantamento também mostrou que a desigualdade de acesso entre a população de maior e menor renda vem caindo, embora continue elevadíssima. Na classe A, 100% dos domicílios tinham conexão à rede, ante 61% nas classes D e E. A atual diferença de 39 pontos porcentuais, referente ao ano passado, era mais que o dobro em 2015, atingindo 85 pontos.

Outras iniquidades foram captadas pela pesquisa, como o tipo de equipamento usado para navegar na internet, assim como a qualidade da conexão − o que interfere na experiência do usuário, podendo até restringir ou desestimular certas atividades. A pesquisa estimou que 64% dos usuários acessavam a internet exclusivamente por meio do celular, porcentual que era de 32% na classe A e de 89% nas classes D e E. Uma disparidade ainda maior apareceu no que diz respeito a ter ou não computador em casa: 99% dos lares na classe A contavam com esse tipo de equipamento, ante apenas 10% nas classes D e E.

Há tempos se sabe que a exclusão digital é um dos principais entraves para o desenvolvimento do País. Como mostra a pesquisa do Cetic.br, houve avanços, mas a desigualdade ainda é imensa, muito além do aceitável numa sociedade que se pretende moderna.  

PT insiste em programa sem cabimento

O Globo

A chapa Lula-Alckmin continua firme na liderança das pesquisas eleitorais, mas as dúvidas sobre o governo que resultará desse casamento improvável ainda despertam preocupação. Não há melhor evidência disso do que as novas “diretrizes” para o programa de governo apresentadas nesta semana. Diante da reação contra os absurdos da proposta anterior, os partidos da coligação (PT, PSB, PSOL, Rede, PCdoB, PV e Solidariedade) resolveram fazer uma revisão para tentar agradar a diferentes públicos. Houve avanços, é verdade, mas o resultado continua decepcionante.

No campo dos avanços, para tentar aparar as arestas com o eleitorado de centro, foram feitos acenos à categoria dos policiais e foi cortado o trecho que pedia a revogação da reforma trabalhista do governo Temer. Mesmo assim, a formulação sobre o tema continua ambígua. Não se sabe ao certo o que querem os candidatos. Os termos são vagos o bastante para poder significar qualquer coisa. O texto, apresentado como ainda sujeito a debate, deixa tudo com um ar de provisório e abre caminho a todo tipo de especulação.

No campo dos absurdos, o documento ainda defende a revogação do teto de gastos e propõe outras formas de manter o equilíbrio fiscal. Quais? Não se sabe. A justificativa para acabar com o mecanismo que serve de âncora contra o endividamento descontrolado é pura empulhação (“colocar os pobres e os trabalhadores no orçamento”). Parece até que o Orçamento da União não dedica parcelas significativas às áreas sociais (como saúde, educação ou combate à pobreza). Pobres e trabalhadores, nunca é demais lembrar, são os que mais perdem por barbeiragens na área fiscal com efeitos na renda e no emprego. Nesse ponto, o PT parece tão irresponsável quanto Bolsonaro.

O documento até reconhece a necessidade de uma reforma tributária. Mas recai na falácia do “argumento Robin Hood”, supondo que taxar mais os ricos resolva o problema dos pobres. Claro que, proporcionalmente, pobres deveriam pagar menos imposto (a tributação deveria ser progressiva). Mas é demagogia acreditar que basta elevar os tributos dos ricos. Seria necessário desfazer a teia espessa de privilégios e enfrentar beneficiados por regimes tributários especiais incrustados no Estado.

Os equívocos continuam: “Vamos reverter o processo de desindustrialização e promover a reindustrialização de amplos e novos setores”. O setor industrial perde peso em relação ao PIB não apenas no Brasil. Dizer que o objetivo será atingido com investimento público e evitando a “desnacionalização do parque produtivo” equivale a retornar aos tempos das benesses para os empresários amigos do poder.

Na obsessão em atacar a imprensa, o PT cerra fileiras com Bolsonaro. Estão lá no documento a “regulamentação da mídia” e “a defesa da democratização do acesso aos meios de comunicação”, eufemismos para a tentativa de pôr um cabresto no jornalismo profissional. Numa democracia, não é papel do governo determinar o conceito de “equilíbrio editorial”. Se tais regras estivessem valendo nas administrações do PT, provavelmente a extensão dos escândalos de corrupção não teria chegado ao conhecimento público.

A chapa Lula-Alckmin faria bem em entender as circunstâncias de 2022. Uma eventual vitória não pode representar a aprovação de um programa de governo que, nos raros casos em que não é vago, está simplesmente errado.

Decisões sobre armas e aborto expõem ativismo da Suprema Corte nos EUA

O Globo

Duas decisões da Suprema Corte americana deixaram claro nesta semana o risco inerente à intromissão do Judiciário em temas que, por natureza, cabem ao Legislativo. A primeira foi a suspensão do direito ao aborto, assegurado nos Estados Unidos em dois casos históricos: Roe v. Wade (1973) e Planned Parenthood v. Casey (1992). A segunda foi a anulação de uma lei que restringia a venda de armas no Estado de Nova York.

Ambas cumprem missões caras à agenda conservadora do Partido Republicano — a favor da liberdade de portar armas, contra a liberdade de abortar. Não é coincidência, portanto, que tenham sido tomadas por placar idêntico e com votos idênticos: seis contra três, reproduzindo a divisão entre juízes liberais (os três da minoria) e conservadores (os seis da maioria).

Há, porém, uma contradição intrínseca entre elas no que diz respeito aos deveres do Legislativo e do Judiciário. Em seu voto derrubando Roe e Casey, o juiz Sam Alito argumenta que tema de natureza tão sensível e controversa jamais deveria ter sido decidido por um tribunal. Afirma que não há um direito ao aborto gravado na Constituição e que caberia aos Legislativos decidir a questão. Alito tem razão nesse ponto.

Nos anos 1970, havia uma mobilização para aprovar uma lei nacional autorizando o aborto por livre escolha da mulher. Com Roe, a Suprema Corte, que então desempenhava um papel ativista na luta por esse e outros direitos civis, assumiu a dianteira e esvaziou as iniciativas no Congresso. Para o movimento pró-aborto, era mais fácil conseguir maioria entre nove juízes do que entre 435 deputados e cem senadores. Desde então, nenhuma legislação sobre o tema foi aprovada no Congresso (a última foi derrotada neste ano), ontem conclamado pelo presidente Joe Biden a tornar lei Roe e Casey.

O Legislativo, foro correto para esse tipo de debate, é o alvo da outra decisão, sobre as armas. No voto vencedor, o juiz Clarence Thomas, ao contrário do que faz Alito, retira dos legisladores a prerrogativa de decidir que tipo de controle impor à venda de armas, pois o direito ao porte está gravado na Constituição. A consequência será a derrubada de leis estaduais que fazem isso — com a provável escalada em homicídios, suicídios, massacres e outras tragédias. Se Alito devolve uma prerrogativa aos representantes eleitos, Thomas retira outra. Eis a contradição.

Na democracia, não cabe ao Judiciário tomar decisões em nome do Legislativo nem impedi-lo de tomá-las. Os representantes eleitos também não podem usar a Justiça como pretexto para se eximir de legislar sobre temas controversos, que custam votos nas urnas. Cada Poder tem seu papel. Para quem encara os tribunais como atalho legítimo na garantia de direitos para os quais nem sempre há maioria no Parlamento, a lição da anulação de Roe e Casey é simples: o mesmo ativismo judicial que apoia uma causa quando a composição de um tribunal é favorável poderá derrubá-la no momento em que essa composição mudar. Pode levar 50 anos, mas um dia acontece.

 

 

 

 

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